“…, jovem maestro de muito futuro, que aprendeu no conservatório do céu. Rival de Miguel, Rafael e Gabriel, não tolerava a precedência que eles tinham na distribuição dos prêmios. Tramou uma rebelião que foi descoberta a tempo, e ele expulso do conservatório. Tudo se teria passado sem mais nada se Deus não houvesse escrito um libreto de ópera do qual abrira mão, por entender que tal gênero de recreio era impróprio da sua eternidade. Satanás levou o manuscrito consigo para o inferno”. Trechos do capítulo IX de “Dom Casmurro”, do Machado de Assis, o chamado “bruxo” do Cosme Velho, tradicional bairro carioca.
Quando alguns incrédulos me perguntam por que as desgraças acontecem, “então Deus não existe! Não poderia ter evitado?” Dá vontade de mandar ler Machado de Assis. Deus não é personagem ou mesmo “comprimário” (papel secundário ou figurante), como bem mostrou o sábio escritor carioca. Satanás está presente, sem chifrinhos e rabinho, claro, em nome do mal, com sua regência malévola. Machado fez esse achado literário que tem um significado muito mais profundo do que aparenta ao leitor desavisado. A Deus não restou alternativa, chamou Satanás e mandou-o reger bem longe Dele. Caiu em palco que calhou por azar de ser aqui, na Terra.
Salto várias décadas, de Machado para os Rolling Stones – isso mesmo, o grupo de rock -, e seu sucesso “Devoção ao Demônio” (“Sympathy for the Devil”), música que inspirou um filme de Godard no final dos anos 1960. Sem conhecer Machado de Assis – infelizmente, pois se tivessem lido teriam feito ainda melhor -, a banda de rock tocou a versão de Keith Richards e Mick Jagger: “Por favor permita-me conhecê-lo, sou um homem de riqueza e gosto”. “Roubei muitas almas do homem para esbanjar”. “E eu estava perto quando Jesus Cristo teve seu momento de dúvida e dor” (N. do A.: ‘Deus, Deus, por que me abandonaste?’). “Exigi que Pilatos lavasse suas mãos e selasse o destino dele” (N. do A.: de Cristo). “Prazer em conhecê-lo, espero que adivinhe meu nome / mas o que te perturba / é a natureza do meu jogo”.
E assim os Stones, creia, eles, mostram o perfil do demônio na Terra, o próprio falando de Satanás na primeira pessoa: Matei o czar e seus ministros, enquanto Anastasia gritava em vão. Também passei pelos tanques de guerra nazistas em blitzkrieg. E gritei “quem matou os Kennedy, quando afinal fomos você e eu”. O demo disse que se cada policial é um criminoso e todos os pecadores santos, como cabeças são traseiros, apenas “chame-me Lúcifer porque eu preciso que alguém me contenha”.
A letra dos longevos ídolos do rock faz ironicamente um duo com a tese de Machado – que se compreendida muito pode explicar. As batalhas, as grandes guerras mundiais, os campos de concentração, as perseguições aos judeus – e agora aos islamitas -, aos armênios, a insanidade de Hitler, a prepotência de seu admirado Mussolini, a era Stalin, as ditaduras, torturas, perseguições e inquisição no mundo inteiro não são atos, de forma alguma, da lavra de Deus, e sim do abusado maestro, que rege a partitura. E assim como quem está sempre presente nas coisas do mal descritas pelos Stones, eis o personagem maléfico pairando sobre os EUA, a Venezuela, os enormes propinodutos subterrâneos da corrupção brasileira que faz povo sucumbir ao desemprego e à fome. Síria, Coreia do Norte, os delírios de Putin, os grupos terroristas que se intitulam islâmicos sem seguirem o Corão, a miséria no mundo. Deus fez a partitura, mas o diabo é que Satanás é o maestro! Salve Machado de Assis!
Todos agradecem quando “Deus salva” uma vida, mas ninguém culpa o Pai quando a pessoa morre. Resignam-se: Deus assim o quis. Se Deus salva por meio de uma cirurgia, é pelas mãos de algum “comprimário” comprometido com o bem. Mas esse médico não tem o controle absoluto da situação exatamente porque lhe falta o domínio sobre a morte – no caso, a ciência ainda não avançou a esse ponto, e nunca vai chegar lá. Ele apenas possui o estudo, o bom coração e a boa vontade com que trata seus pacientes. Tampouco a morte do doente foi culpa do diabo, que apenas rege, mas não toca.
Os músicos de nossa orquestra também erram, pois são filhos do Pai, o grande poeta que desistiu da partitura. A questão do bem e do mal existe desde sempre, e na filosofia é assunto inesgotável, assim como os mistérios da vida e da morte. Está muito acima de nós, reles músicos, e até os solistas, coadjuvantes e figurantes. Somos submetidos aos implacáveis desígnios rabiscados no ar pelo maestro e sua regência, e nos resignamos quando o maestro compromete o bom andamento da obra, cabendo a nós repudiar os erros de condução ou quando a partitura da orquestra tem alguma grande aberração que transforma a bela ópera da vida em um verdadeiro inferno.
Como bem disse Machado de Assis, Deus é o poeta, a partitura foi levada para o abismo de onde rege Satanás, ópera cuja direção temos de acatar por imposição. Apenas podemos tentar tomar as rédeas quando há o necessário suporte da Administração Superior, dando-nos ferramentas para a vitória. Porém, após cada embate, ao final Satanás sempre volta, enquanto nós, pobres músicos, apenas nascemos, morremos, somos substituídos por outros que prosseguem obedecendo à partitura e à pontaria ameaçadora da cruel batuta do capeta. Não tive o menor “prazer em conhecê-lo”, devolvo retribuindo Lúcifer na apresentação dos Rolling Stones. Mas passei-lhe a perna porque adivinhei seu nome. E sei da natureza do seu jogo!