Debatendo o debate

Henrique Autran Dourado

De acordo com o Bill of Rights Institute, o primeiro debate político aconteceu entre os candidatos ao Senado americano Abraham Lincoln e Stephen Douglas. A estreia obteve sucesso, e prosseguiu com mais seis encontros, lembrados até hoje como “os debates Lincoln-Douglas”. A prática, revivida tempos depois, teve origem na ideia de que os candidatos devem apresentar seus pontos de vista publicamente por meio de um diálogo construtivo sobre o futuro da nação.

Esses debates de Lincoln aconteceram perante plateias, e ele seduziu, com sua verve e oratória contagiantes, os eleitores que o levaram à vitória na disputa pela vaga no Senado americano. Tomou posse em 4 de março de 1847, e após longa estrada coroou sua brilhante carreira política com a chegada à Presidência da República em 1860, tomando posse em março de 1861. Foi assassinado em um teatro com um tiro na cabeça aos 56 anos, em 15 de abril de 1865.

O debate e a trajetória de Lincoln, brilhante orador, e a disputa Lincoln-Douglas abriram caminho para, bem mais tarde, ser concebido um primeiro encontro pelo rádio. Em 1940, Wendell Willkie desafiou o então presidente Franklin Roosevelt para um debate radiofônico que toda a nação ouviria. O presidente, conhecendo os dotes de orador do adversário, não aceitou – e venceu.

Em 1960, John F. Kennedy repetiu a façanha de Wilkie e desafiou Richard Nixon para uma inédita série de debates na TV. Kennedy, homem calmo e educado, surgiu muito bem vestido, cabelos impecavelmente aparados, garbo condizente com sua fama de sedutor entre as mulheres.Antes de entrar em cena, foi maquiado, fato corriqueiro nos dias de hoje. Ao contrário, Nixon apresentou-se desleixado, barba mal feita, olhares perdidos em contraste com os de Kennedy, centrados na câmera – ou seja, no público telespectador. Nixon mostrou-se nervoso, inseguro, e talvez tenha perdido uma batalha dada como ganha devido a essa desastrada performance, e por uma margem estreita de votos.

A tradição dos debates televisivos vem se mantendo solidamente como parte do processo eleitoral americano, e desde Kennedy vs Nixon é parte fundamental das disputas nos EUA. Nesses debates os candidatos demonstram sua segurança, seu conhecimento histórico de dados e fatos, com suas propostas, e até mesmo seu caráter, além da habilidade em perguntar e responder com clareza.

Tudo isso foi para o espaço no debate Trump vs Biden, em 29 de setembro de 2020, quando o presidente, cuja empáfia perturbou o programa inteiro, invadiu abusada e repetitivamente o tempo de Biden, atravessando-lhe as falas. Mostrou-se bom de pose e presença, homem de TV que já foi, mas muito rude, e só. A discrição de Biden, seus sorrisos irônicos quando alvo de alguma mentira ou ataque do adversário, e seu discurso controlado e bem dosado, levaram-no a um sucesso talvez inesperado, segundo pesquisa da rede CNN: 57% a 41%. Um segundo confronto não aconteceu: Trump, estrategicamente, recusou-se a discutir online.No debate final, em que o republicano foi bem mais comedido, o resultado foi em patamares ainda mais altos para Biden, que ampliou a diferença,do alto de seus 60% contra 44% de Trump, de acordo com a Ipsos.

Espelhando-se na tradição americana, em 1960 o Brasil tentou inovar, no programa Pinga-Fogo, na TV Tupi, com uma discussão entre Lott, Adhemar de Barros e Jânio – que declinou do convite para preservar sua vantagem e levou a faixa. Com a ditadura, as eleições se transformaram em um sonho distante, já que o cargo de presidente era preenchido pela cúpula militar entre seus pares.

Em 1974, um tímido e muito bem vigiado debate para senador entre Paulo Brossard, do MDB, e Nestor Jost, da ARENA, aconteceu no Rio Grande do Sul, pela TV Gaúcha. Os próceres da ditadura temeram o ressurgimento da “ameaça”democrática e lançaram, no mesmo ano,pelas mãos do então ministro da Justiça Armando Falcão, a lei que levou o sobrenome dele:uma exposição de fotos, à3×4, com o nome de cada candidato a parlamentar encimando-a, tendo embaixo o número eleitoral, lembrando um programa policial da época.

No dia 19 de novembro de 2020, na Band, enfrentaram-se dois candidatos à Prefeitura paulistana.Polidos, educados e comedidos em suas falas, salvo uma ou outra intervenção um pouco mais contundente: Bruno Covas, do PSDB, e Guilherme Boulos, do PSOL. Fora o combate à pandemia, que foi o pico do encontro de média temperatura, o debate encerrou sem baixarias, porém morno, faltando tempero e eloquência na oratória de ambos.

No mesmo dia, também pela Band do Rio, terra de uma infeliz sucessão de governantes no estado e na capital, o jogo foi bastante baixo desde antes do encontro entre o “bispo” e prefeito Crivella e Eduardo Paes, e o debate foi amargo e desagradável. Houve acusações de Baixo teor de Crivella, chamado de “O abominável bispo das trevas” pelo colunista Ascanio Seleme (O Globo, 21/11/20): disse que, se eleito, Paes nomearia alguém do PSOL para a Secretaria de Educação, e que seria estimulada a pedofilia nas escolas.Chamou-o de “viado vagabundo” e “madrinha da mentira”

Debate vem do francês medieval “débat”, discussão, querela, e no sentido acadêmico é a prática da controvérsia, do contraditório.Também está presente no meio jurídico e segue o conceito de academia desde Platão. Mas o sentido emprestado à palavra na Idade Média é mais afeito à nossa realidade: espécie de declamação entre atores, com sentido irônico, agressivo e malicioso. Um circo.