Criticar o crítico, censurar o censor

Henrique Autran Dourado

“The Critic” é uma revista britânica lançada em 2019 cujo título veio de uma publicação homônima da época vitoriana (1843-1863). Seu contexto é político-cultural, algo a ver com O Espectador, que se propõe a “criticar os críticos”. O criticismo é a análise opinativa de textos jornalísticos, peças de teatro e músicas de todos os tipos. Grande exemplo foi Bernard Shaw (1856-1950), erudito na música, na dramaturgia e dono de uma verve humorística especial: “Parece proibido compor óperas fora da sombra do Vesúvio” (vulcão italiano) – insinuando que naquela época só se poderia compor óperas na Itália, que dominava a cena. Outra: “Quem se atrever a executar qualquer obra no mesmo programa da 9ª Sinfonia de Beethoven deve ser preso, sem direito a fiança” – exaltando o patrimônio universal que é a obra-prima do compositor alemão.

Disse Millôr Fernandes, jornalista de O Pasquim e grande frasista: “Livre pensar é só pensar”, e por analogia “livre criticar é só criticar”. Entretanto, para exercer a profissão com seriedade é necessário certo conhecimento, deve-se buscar correição e coerência: um crítico sério não é um diletante. O problema é quando quem critica cede à pessoalidade, eivado de segundas intenções com o fim de atacar o criticado. Exemplo foi um obcecado detrator de Villa-Lobos, o pianista e crítico Oscar Guanabarino. O maestro nunca levou desaforo para casa e os devolvia com merecidas chapuletadas.

Onde vive um homem há ideologia, e é impossível fazer uma opinião desparecer como germe na assepsia hospitalar. Terríveis tempos do positivismo de Auguste Comte, sob a bandeira da filosofia da ciência! Durante a ditadura, no primeiro ano na universidade, aprendi o “distanciamento epistemológico” – ah, palavra! -, inserido na teoria do conhecimento. Mas tal suposto distanciamento não existe, a pessoalidade dá um jeito de se imiscuir sorrateiramente no assunto.

A censura é assunto à parte, embora em algum ponto passe por uma análise como a da crítica. Censores são indivíduos que, em tempos de regimes totalitários de todos os matizes, são investidos do poder de modificar, mutilar e cortar discursos, obras de arte, jornais, letras de música ou o que for. Stalin, o implacável ditador da União Soviética, tinha como ministro da propaganda de confiança Andrei Zhdanov, mestre na tesoura, censor-mor que ambicionava suceder o chefe. Contraditoriamente, o teórico marxista italiano Antonio Gramsci publicou, entre 1916 e 1918, artigos com ataques contundentes à ideia fascista de “purificar” a literatura e o pensamento italianos, isso já ao vento das ideias que gestariam Mussolini.

A figura do censor já existia na Roma antiga para “manter a moralidade”, mas volta e meia ela ressuscita: bom exemplo é 1964, já com Castello Branco, quando foram criados meios de controle do Judiciário e Legislativo para garantir o regime, sob o epíteto da “soberania nacional” (CORRÊA, Michelle Godinho. “Censura na Ditadura Militar”. BH: UFMG, 2012).

Sobressaía-se a poderosa Solange Hernandez, que de 1981 a 1985 passara a comandar toda a censura no país (Veja, 7/10/19). Foi autora da proibição da novela de TV “Roque Santeiro”, de Dias Gomes, Aguinaldo Silva e outros, a peça “Calabar”, de Chico Buarque, músicas como “MiIagre dos Peixes”, do Milton, e “Zero”, livro de Ignácio de Loyola Brandão, entre inúmeras obras. Ainda adolescente, tive uma canção mutilada – suprimiram a frase “um grito vivo de verdade” – às vésperas de um festival entre colegiais do Rio; corte sem nexo algum, mas doloroso para um entusiasmado iniciante de 17 anos.

O Brasil já tinha vivido a experiência da ditadura getulista, que em 1939 instituiu o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), cujas atribuições tornaram-se gradualmente mais amplas – até, por exemplo, formar jovens estudantes segundo os princípios da ideologia oficial. Tinha como comandante o implacável Filinto Müller, chefe da polícia política afinado com Goebbels, o homem forte da propaganda e censura de Hitler.

Mais recente é a matéria do UOL/Folha intitulada “STF: Maioria decide ser ilegal dossiê contra antifascistas” (27/04/22), artifício que teria como objetivo exatamente controlar as ideias dos servidores públicos, suas opções políticas e mesmo vidas particulares.

Talvez o censor seja uma espécie de crítico com “licença para matar”, que age com sadismo a mando de um regime – ou, veladamente, dentro de organizações civis. Ele não acrescenta, apenas mutila e veta. Já o crítico é um cidadão civil geralmente incumbido de fazer uma resenha opinativa sobre peça de teatro, concerto ou filme. (Às vezes sujeitos a escorregadelas: lembro-me de um conhecido crítico do Rio que escreveu sobre falhas em passagens de certo recital, como “as tercinas excessivamente preguiçosas no segundo movimento da sonata para piano” – só que a peça fora cancelada, de onde se conclui que o articulista sequer havia ido ao recital.

Da atividade do crítico espera-se conhecimento e boa-fé, e ela deve ser aplaudida, quando bem feita. Mas a outra tarefa, a de censurar – do latim “caesura”, corte –, é por princípio maligna: uma ação a serviço do poder autoritário, por vezes aliada à frustração de não ter sido ele, o censor, quem criou a obra que destruiu com inveja.

Loas ao espírito crítico sério, fora a censura, seja oficial ou amarguradamente enrustida. Em uma de suas epístolas, Paulo manifestou-se: “Não extingais o espírito, (…) examinai tudo, retendo o que é bom” (I Tess 5, 19-21). Assim seja.