Henrique Autran Dourado
Ouvi o termo corona poucas vezes, e sempre de regentes italianos. Um deles foi o maestro Tullio Colacioppo, o único concursado efetivo do Theatro Municipal de São Paulo (orgulhava-se disso!). Um homem histriônico, bom de papo, como todo italiano, ele estava à frente da Sinfônica e Coro quando um palco improvisado desabou na cidade paulista de Americana, em 1993, com artistas e instrumentos. Retomando o assunto, “corona”, em italiano, que dizer coroa, e por semelhança com o rico adorno dos monarcas, dá nome a um símbolo musical: um semicírculo com a parte aberta geralmente para baixo, dentro da qual fica um ponto. Fermata, também do italiano, quer dizer “parada”, e se refere ao mesmo sinal. Em alemão, diz-se “Fermate”, assim como em francês (só que com “f” minúsculo). Em inglês, chama-se “hold” – parada, suspensão. A fermata pode aparecer sobre uma nota, um acorde (grupo de notas) ou mesmo uma pausa, suspendendo tanto sons quanto silêncios.
Temos ainda a GP, ou grande pausa, uma longa parada, frequentemente de um compasso, sempre “a piacere” (à discrição) do maestro. Para um solista, o símbolo da corona pode indicar uma cadenza, de “cadentia”, em italiano (“cadere”: cair, em latim). É o momento de um concerto ou ária em que o instrumentista ou cantor improvisa, geralmente sobre um trecho escrito, exibindo seu virtuosismo técnico e interpretativo até “cair” de volta na tonalidade original. Cadenzas costumam ser compostas pelos próprios compositores para a livre execução dos solistas, mas há várias famosas de grandes virtuoses já incorporadas às partituras, como a do húngaro József Joachim para o concerto para violino de Brahms.
O leitor pode ter estranhado o tema que eu abordava, mas agora vai se sentir confortado em saber que – “fino a questo punto” – o assunto era musical. Esse efeito da suspensão do tempo de uma única nota ou acorde – ou mesmo o silêncio – é de suma importância em música. O exemplo mais clássico de fermatas está na introdução da 5ª Sinfonia de Beethoven, dotando a nota suspensa da extrema dramaticidade, tensão e angústia tão características do compositor.
Agora uma fermata sobre a pausa, “dal segno al fine”: um dos vírus com potencial mais devastador dos últimos tempos (a Covid-19), popularmente, o coronavírus deve o nome à própria semelhança com o ornamento real. Em outubro de 2007 (pasme!) a Revista de Microbiologia Clínica, da American Society of Microbiology, publicou um artigo (Vol. 20, nº 4), de pesquisadores chineses e americanos, que deveria ter recebido a máxima atenção: “Síndrome Respiratória Aguda Grave como um Agente de Infecção Emergente e Recorrente”: “A presença de uma grande reserva do tipo SARS-COV em morcegos-ferraduras (‘Rhinolophidae’), juntamente com a cultura do consumo de mamíferos exóticos na China meridional é uma bomba-relógio”. E pergunta: “Estaremos prontos para um ressurgimento?”.
Mais de 12 anos após, a resposta surgiu como o rastilho da bomba: não! Muitas autoridades não se importam com pesquisas e chegam a estrangulá-las. Em Hubei, China, dezembro de 2019, reapareceu e tomou corpo a Síndrome Aguda Grave Coronavírus 2 (SARS-CoV-2) – mas não foi profecia dos cientistas e sim um alerta, o primeiro tique-taque da bomba-relógio. É imprevisível o pico da pandemia até que ela chegue a um estágio em que haja controle, como acontece com outras moléstias infecciosas de larga escala. Só que o Brasil, como a Itália, procrastinou as ações necessárias e profiláticas, aqui mais ainda do que no país europeu.
Somos obrigados ao isolamento social que impõe um prejuízo imenso: tombo na economia, escolas, teatros e shoppings fechados; o mundo dividiu-se em núcleos familiares ou de eremitas, boa parte pendurada em celulares ou computadores para se sentir viva e em comunicação com o exterior. Haverá consequências de ordem psicológica bastante óbvias, como conflitos, angústia, ansiedade, depressão e síndrome do pânico. Para a maioria, a solidão é uma novidade cruel, um hiato na vida.
Henry Thoureau (1817-1862), filósofo, poeta e ensaísta norte-americano, publicou seu “Walden, ou Vida no Bosque”, que se tornou bastante popular ao lado do ensaio “Desobediência Civil”. Thoreau envolveu-se com ecologia, ambientalismo, era considerado um anarquista radical e seus escritos libertários influenciaram de Martin Luther King, Jr., a Leo Tolstoy. Isolou-se em Walden Pond, em Concord, Massachusetts – por acaso, local onde eu desfrutaria da minha “praia de verão” na Grande Boston, mais de um século depois. À beira de um lago maravilhoso e bosques sem fim, Thoreau construiu uma cabana de 13 metros quadrados onde se isolou por “dois anos, dois meses e dois dias”. Sobre sua produção, ninguém poupa superlativos: o poeta Robert Frost disse que “em apenas um livro ele ultrapassou tudo o que tínhamos na América”, e o escritor e crítico John Updike declarou que “um século e meio após sua publicação (N.A.: “Walden”), ele se tornou um ícone do preservacionismo, da desobediência civil (…), um santo eremita”.
Hoje, todos vivenciamos nosso lado Thoureau. Meio eremitas, isolados, e, para os que podem, próximos à natureza. A “cabana” de cada um de nós resume-se a dois ou três cômodos de uma casa ou apartamento. São tempos de reflexão, o país necessita que pensemos nos erros passados para corrigir os presentes, rumo ao futuro que nos aguarda para o dia em que sairmos de nossos exílios.