Henrique Autran Dourado
Não faz muito tempo escrevi neste espaço um artigo – “Pensando a Copa” – sobre música, esporte, adrenalina e as interações deste hormônio com a performance (desempenho presencial), característica de ambas as atividades. Discorri tanto do ponto de vista benéfico dessa droga natural produzida pelo corpo quanto a hora em que ela chega a derrubar o artista ou atleta, um nocaute mental. Falei dos efeitos de um quase popular “antídoto” para controle da adrenalina, entre músicos, os betabloqueadores – de prejuízos sensíveis à performance musical. Aliás, digamos que “mecaniza” a interpretação, submetendo uma pretensa segurança do músico em desfavor da criação artística. Cabe ao músico sucumbir diante do caminho mais fácil e confortável ou trabalhar por uma interpretação que realmente cative o espectador (toda arte performática sempre tem como objetivo ser ao vivo, é bom lembrar). Mas hoje abro espaço para ainda outra tendência: os esportistas que buscam algum tipo de catarse (libertação) via adrenalina em fortíssimas doses.
São os chamados esportistas radicais, ou de aventura, cujo prazer é exatamente a busca pelo máximo, o que se traduz em rápida pulsação cardíaca aliada a uma intensa pressão sanguínea. Filosoficamente, pode-se dizer que é brincar com o risco, que remete ao limiar da morte – ou seja, o indivíduo busca emoção sentindo, às vezes muito perto, a mórbida sombra da velha e temida “senhora”. Quase todos esses esportes – a maioria inventada nos EUA, daí os nomes em inglês – são cultivados lá e cá, tal como o arborismo, a asa delta, o balonismo, o bungee jumping, o kitesurf, o longboard, o mountain board, o parapente e o trekking, entre outros. É claro que, sob um raciocínio bem simplório e reducionista, uma volta de bicicleta, um passeio na calçada, um descer de escadas, alimentar-se na rua oferecem algum perigo, enfim, em tudo há certa mínima dose de risco, involuntária, que seja. Quero falar dessa busca determinada e voluntária pelo perigo, e, mais uma vez, de certo obscuro jogo de cartas com a morte. Claro que todos esses esportes radicais têm de ser monitorados, executados sob supervisão e praticados em ambiente preparado para resgate e socorro: enfim, tudo para oferecer maior segurança – dentro do perigo de que é consciente do esportista. E o surfe é um desses esportes, especialmente se for levado às modalidades mais radicais, como as ondas de grande altura.
A praia de Nazaré, oeste de Portugal, além de aprazível local turístico, é famosa por suas altas ondas, sempre desafiadoras. Surfistas de todo o mundo procuram-na pela fama – hoje, enquanto escrevo, ondas chegaram a até 4 metros de altura, trazidas por dóceis vagas (no Rio de Janeiro já seriam chamadas de “calhaus”, ondas muito grandes). Abrem-se enormes túneis, fascinantes e desafiadores para os surfistas, que aguardam ansiosamente por aquela onda gigante especial, de 15 metros ou mais de altura, o equivalente a um prédio de quatro andares. (O recorde em Nazaré foi estabelecido 2022, quando um alemão, Sebastian Steudtner, surfou a 26,21 metros de altura, quase uma construção de perto de oito andares).
Na tarde do dia 5 de janeiro deste ano de 2023, Márcio Freire, brasileiro de 47 anos aficionado por ondas gigantes, foi seduzido por uma dessas vagas enormes e, como sempre, atirou-se com a prancha para uma viagem pelo túnel do tempo que mais uma vez parecia abrir-se de forma alucinada à sua frente. A partir daí, pouco se pode imaginar além do que ele próprio diria, se pudesse. Guiava-o uma descarga volumosa de adrenalina, companheira inseparável nessas viagens, mestre na sedução dos surfistas radicais como a sereia Lorelei dos navegantes do rio Reno, cantando e lançando-os contra os rochedos após se submeterem aos seus chamados voluptuosos.
Imagine agora Márcio, aventureiro, na boca de um desses túneis de água salgada, ante mais um verdadeiro convite ao desconhecido. Ele vê apenas um clarão à sua frente, mas o túnel é mais veloz e afasta a luz mais e mais a cada segundo, até que ele se vê no escuro, no breu. Sabendo que há uma arrebentação na areia para onde confluem poderosas ondas – outro perigo de Nazaré, junto a um esfomeado refluxo de corrente a puxar-lhe para trás e para baixo. Daquele turbilhão imenso surge um caleidoscópio tridimensional girando em todas as direções, um globo imaginário sob o desenho vitruviano de Da Vinci, agora com pés e mãos torcidos e trançados, até o apagar geral da ribalta, um globo girando perdido e sem piedade para os lados, para a frente e para trás, para cima e para baixo. Corte para outra cena: de fora, vê-se a Marinha portuguesa retirando um corpo multifraturado e já sem vida por conta de uma parada cardiorrespiratória. A busca pelo limite despertada pela adrenalina levou Márcio, bom baiano, para junto de Iemanjá, rainha do mar.
“É doce morrer no mar”, cantaria o também baiano Caymmi, “nas ondas verdes do mar”. Mas não houve poesia nas imensas ondas verdes onde ele foi se afogar, “fez sua cama de noivo / no colo de Iemanjá”. Segundo os colegas do “Mad Dog” Márcio – de “Cachorros Loucos”, como o trio de amigos surfistas era conhecido na Bahia – o companheiro de ondas em Salvador e no Havaí está no lugar onde gostaria. Talvez mais na poesia do Nelson Motta (feita para música de Lulu Santos) do que na do Caymmi, ele poderia cantar: “Não adianta fugir / nem mentir / pra si mesmo agora / há tanta vida lá fora / aqui dentro sempre / como uma onda no mar”.
“In memoriam”.