Henrique Autran Dourado
Recebi um aviso no celular para que os condôminos de onde eu moro limpem e capinem seus terrenos, se vazios, para evitar animais peçonhentos que costumam se alojar entre restos de obras, capim, madeira. Coisa comum onde há mato, áreas verdes como um bosque, lugar onde eles se escondem, entre preás, carcarás e outros bichos. Junto com o texto, a foto de uma cobra enrolada em um poste, lembrando uma das inúmeras ilustrações de Adão e Eva: a árvore do mal, e ambos no paraíso prestes a cometerem o pecado da maçã proibida. Aqui não era uma cobra imensa, como em algumas daquelas ilustrações, nem tinha cara de capeta ou era mais parruda do que o tronco, como em outras. Mas era uma cobra de se tirar o chapéu (e passar correndo)! O condomínio vizinho, já totalmente construído, optou por predadores de peçonhentos como escorpiões: vê-se aqui e ali grupos de pavões, angolas ciscando sabe-se lá o quê, e com sua técnica especial corta o ferrão do aracnídeo, onde fica o perigoso aguilhão (fonte: Fiocruz).
Mas e a expressão “ver a cobra fumar”? Lembra algo como “galinha criar dente”. Bom, por volta de 1944 corria pelo Brasil o boato de que o país entraria na 2ª Guerra Mundial. A hipótese parecia tão impossível que jornalistas, de chacota, fizeram uma aposta: era mais fácil ver uma cobra fumar do que o Brasil ingressar no conflito (melhor do que galinha criar dente). Pois não é que entrou, e a Força Expedicionária Brasileira (FEB), por ironia, passou a usar como símbolo uma cobra fumando um cachimbo? Toda verde, fundo amarelo, sob um dístico azul onde se lê, em branco – as cores da Bandeira Nacional – “Brasil”. Um ano antes, o primeiro Grupo de Aviação de Caça criara seu logo: um avestruz com um escudo representando o Cruzeiro do Sul, na asa direita uma arma expelindo uma bala. “Senta a Pua”, bradavam os soldados da Aeronáutica, e daí surgiram brasão e lema de combate da Força Aérea.
“A cobra vai fumar” traz uma aura de medo, como “o bicho vai pegar”, e às vezes “é hora da decisão”. Agora, se for por ordem sabe-se lá de quê ou quem – “cobra mandada”, segundo nosso rico folclore -, é um modo de dizer que sob a ordem de alguém do mal fará o mal. O folclorista Câmara Cascudo diz que “cobra mandada” veio da cantiga da roça “os olhos dele são de ‘cobra mundiada’”, entendendo-se por “mundiado” o jeito de olhar de alguém meio que hipnotizado para cumprir o mando do mal. Já quando se diz que fulano gritou “cobras e lagartos” é porque a pessoa falou coisas terríveis sobre outrem. E “copla” era uma deliciosa forma poética espanhola de métrica variável da Idade Média, como o villancico, com “coplas” (estrofes) variáveis. Na América Latina, casta e pura, a copla veio a mesclar-se às canções de Natal.
Algumas expressões associam “cobra” a experiente, com expertise em algum assunto, tal como “ele é cobra nisso” (ou, ao contrário, malaco, “cobra criada”). Não somente nas coisas ruins, às vezes tem um lado bom. Pois se “ninho de cobras” é lugar onde vai gente ruim, pode ser também o da elite expert. Há cobras na música: o serpentão, instrumento sinuoso de sopro criado na França do século 16, e sua variante “serpent d’église” (de igreja), entre vários outros. Há a dança do fandango paulista que é brincada serpenteando – daí o “cobra” -, nome também da “cobrinha”, um passo jocoso do maxixe. Cobra, na cultura popular, tem essa ideia de fila, como em “olha lá vai passando a procissão / se arrastando que nem cobra / pelo chão” (G. Gil).
Não é sem um pouco de maldade que se diz “matar a cobra e mostrar o pau”, algo como “resolver o assunto e provar”, geralmente em autoexibição. Haja vista a historieta contada por Monteiro Lobato, em seu livro “Fábulas” (SP: Ed. Brasiliense, 1960), “O homem e a cobra”: nesta fábula, ao encontrar uma cobra ferida, ele a levou ao peito, para aquecê-la, e chegando em casa colocou-a junto ao fogão. Saiu para trabalhar e, ao retornar, lá estava ela toda cheia, com a língua esticada, em posição de bote. O sujeito, furioso, armou-se de um pedaço de pau e a matou, chamando-a de ingrata. Diz-se que se alguém mata a cobra a pauladas e, como fosse um estandarte, ele a exibe, é para mostrá-la como troféu. Já cobra que perde o veneno é o gaiato que fica atormentado com algo ruim que lhe aconteceu, mas é incapaz de reagir.
Ah, elas são terríveis: podem ser más ou nem tanto, mais dóceis ou assassinas; dão nome a danças, instrumentos ou festejos de procissões, são o fiel da balança do mal entre Adão e Eva ou, ao contrário, o mensageiro da tentação. Na farmácia, o cálice está associado à cura, e a serpente ao saber, à ciência. Mais ainda: na medicina, Asclépio, deus da cura na mitologia grega, tem em seu bastão a cobra-símbolo do espiritual sobre o corporal, a própria constante renovação (troca de pele, ou couro), entre a vontade de salvar e o risco ver morrer; também se atenua ou anula o veneno com o seu próprio (e não seria essa a base para vacinas e tratamentos alternativos, como a homeopatia?).
Pelo sim, pelo não, mesmo havendo aqui e ali um lado simpático no popular, é de bom alvitre carpinar o mato, como se diz no interior, para afastar o risco desses animais peçonhentos, como as cobras-Quixotes e suas companheiras Sancho Panza, as lagartas. “Cobra engolindo cobra” é briga sem fim, de igual para igual, dizem os jagunços; é cantoria em “moto perpétuo”, estrofes de duas palavras – cobra e engolindo – repetidas emendadamente, como rosca sem-fim. Bora, povo, carpinar e limpar o matagal!