Christina Aguilera, o Inferno e a Covid

Henrique Autran Dourado

Christina Aguilera é uma premiada cantora norte-americana. Nascida há 41 anos na ilha de Staten, onde se chega via barco ou ponte a partir do Brooklin, em Manhattan. Tem mais de 75 milhões de CDs vendidos e rivaliza com a texana Britney Spears, da mesma idade, com quem perfila ombro a ombro com a texana Beyoncé.

Só conhecia Aguilera de nome, nunca comprei sequer um CD dela, apenas ouvi alguma coisa aqui e ali. Mas então por que lembrá-la, se me é tão pouco familiar? Foi em um sonho de uma noite de inverno, 22 de julho, em que ela ora meio que se perdia entre as pessoas nas ruas de algum lugar, ora conversava comigo apenas com sorrisos, não me lembro se balbuciou uma palavra sequer – meio clichê de sonhos, isso, não? Acordei questionando o porquê de Aguilera ter surgido num sono dos mais profundos, se meu conhecimento dela é tão pouco. De manhã, ao passar pela sala, vi que havia deixado sobre a mesa um livro que recebi de um sebo virtual: o volume “Purgatorio”, de “La Divina Commedia”, de Dante Alighieri (séc. 14), edição de 1963. A associação entre o autor e Aguilera foi imediata, o sobrenome virara anagrama na sopa de letrinhas conectada ao meu inconsciente.

Comprei o “Purgatorio” e não sei explicar direito o motivo, fora já possuir o “Inferno”. Sem querer, sem Freud e sem Jung, claro que queria sair do Inferno para o Purgatório (e depois o “Paradiso”?). Não me precipito, chegarei à Covid oportunamente, mas preciso antes refletir sobre um trecho de “Inferno, Canto I”, que usei na introdução de um livro meu, há muitos anos, com a interpretação de um colega, professor de literatura italiana da USP (Dante foi o precursor do idioma italiano, ou digno do título por excelência). “O dia mal nos deixava e o céu acinzentado cobria os animais que estão na terra (…) E eu era um que me preparava para empreender a guerra, pelo caminho” (a razão, explicou o colega) “e pela piedade” (o espírito). “Ó musas, Ó alto engenho, ajudai-me. Ó mente que escreveste o que eu vi, eis aqui a tua nobreza”. (Um dia recitei do original este trecho para uma italiana de Milão, e ela, emocionada, lamentou-se: “meu Deus, o que fizeram com a nossa língua?”, referindo-se ao italiano moderno, como talvez um de nós fizesse ao ouvir Camões no original).

Na guerra que me preparei para empreender, e aqui me refiro à da Sars-Cov-2, a maldita Covid, sigo os protocolos da OMS. Duas vezes convocado, recebi as doses da bendita vacina, e desta vez associei a palavra a “vecina” – vizinha, em italiano – por uma frase homérica de “Investigação Sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita”, filme de Elio Petri de 1970, auge da repressão contra os movimentos populares: “Repressione è nostra vecina. Repressione è civiltà!” (“Repressão é civilização!”), para delírio da plateia de policiais em cena. E arrepios nossos.

Sem mais associações volto à guerra, o inferno sanitário para o qual estávamos despreparados e que já passou por ao menos cinco letras do alfabeto grego – andou por variantes denominadas Alfa, Beta, Gama e agora Delta e Lambda. Se saltou Epslon não sei, mas enfrentaremos provações enormes. A Delta é a que mais apavora neste momento, ainda mais quando uma das vacinas se mostra fraca diante dela. Não sei do rigor desta informação, segundo a qual certo produto oferece pouca resistência à nova cepa, então não declino a origem do produto no varejo, prefiro o atacado: o geneticista Renan Pedra, da UFMG, diz que “imunizantes contra a Covid continuam protegendo contra casos graves, mas a cepa aumenta risco de infecção”. E enfim: “Transmissão da variante Delta é maior inclusive entre vacinados”. Na edição de 22 de julho, o The Times of Israel noticiou que ela é responsável por 90% dos novos casos de Covid no país, e a mesma proporção é esperada para a Europa inteira, segundo a DCA da União Europeia (Euronews, 24 de junho). Nos EUA, em apenas duas semanas, segundo o CDC, o aumento do número de infecções foi de 121%, em grande parte pela Delta.

É inevitável que a nova cepa chegue com força no Brasil. Mas se Israel, EUA e UE não estão preparados, o que será de nós, ainda que tenhamos uma vantagem, um handicap nesta infeliz olimpíada: estamos entrando na arena com precioso atraso. Para evitarmos “lockdowns”, desabastecimento e pânico, é preciso nadar contra a maré com vacinação e esclarecimentos gerais: parte da população sequer leva a sério a segunda dose e outra até mesmo a própria inoculação. Mal informada, não lê jornais, e outros só ligam a TV depois da novela – encerrado o telejornal, horário do jantar.

Muitos já tiveram Covid e por isso se acham protegidos: andam sem máscaras, desafiam decretos e leis sem mesmo saber que é possível serem reinfectados, conforme esclarecem cientistas e mídia do mundo inteiro; promovem e frequentam sem proteção festas clandestinas de até 1.500 pessoas; buscam nas praias lotadas o sol quente de que fomos privados por castigo da natureza e vestem armaduras imaginárias dizendo até que a cachaça “mata o bicho”. Por fim, é esta população que vai determinar, em rebanho, o dano que a Delta vai causar. Soluções laboratoriais, ao menos do pouco que se pode vislumbrar, ainda não são concretas, e, pior de tudo, há o estímulo inverso dos maus exemplos, cidadãos machistas autoproclamados atléticos. Nesse ritmo e despreparo, tão cedo não rumaremos ao purgatório, só será possível empreendermos a guerra pelos duros caminhos terrenos e espirituais do inferno de Dante Alighieri.