Henrique Autran Dourado
Nossos antepassados marcavam, a cada nascer do sol, referência para contar os dias. Depois, o ano. Século e milênio passaram a ser parâmetros maiores a preservar a memória do tempo. A palavra “ephemerides” surgiu do latim c.1523, significando memorial dos dias, calendário. Em um conceito mais amplo e para efeito deste texto, refere-se a fatos marcantes, de cem anos atrás. Fazer um glossário de efemérides centenárias não é coisa fácil, especialmente quando envolve pessoas. Assim busquei, dentro do possível, afastando as datas de falecimento. Folheei o caudaloso “A Vertigem das Listas”, do escritor e estudioso italiano Umberto Eco, que analisou os inúmeros tipos de listas e catálogos de nossa cultura ocidental, elaborados desde a antiguidade.
Há cem anos, em 1922, aconteceram no Rio os “Jogos Olympicos da Independencia”, abertos na piscina do Fluminense F. C. pelas equipes do Brasil e da Argentina, seguindo-se o “primeiro jogo latino-americano de water-polo” (Estadão, 15/09/1922). Também foram oficializadas a letra do Hino Nacional e a bandeira, e dada a largada para o avanço do modernismo, na chamada Semana de 22: Tarsila, Menotti Del Picchia, Mário de Andrade, Villa-Lobos, Oswald de Andrade, Di Cavalcanti e outros. Cem anos depois, neste bicentenário da Independência, em 7 de setembro, não houve celebração; apenas uma sessão solene do dia 8, no Congresso Nacional, com a presença de autoridades do Legislativo e Judiciário (grifo), representantes de 24 nações e o presidente de Portugal. É por esse marco histórico, 1922, que lembramos e saudamos, dentro do que a memória permite e a documentação oferece, fatos e personalidades. Entre fazê-lo por datas ou ordem alfabética, foi preferível agrupá-los por áreas, dando maior coerência à listagem.
1922 foi um ano pródigo no nascimento de artistas de teatro e cinema, como Bibi Ferreira, de 1º de junho: uma atriz completa, além de cantora e diretora de teatro. Não me esqueço dela na “Gota d’Água”, de Chico Buarque e Paulo Pontes, peça da qual participei como músico: Bibi estrelou com brilho máximo. Pouco depois, em 23 de agosto, Tônia Carrero, outra atriz fenomenal, sedutora, voz encorpada e par frequente de Paulo Autran (meu primo de segundo grau), de 7 de setembro, mestre das peças de Molière, como “O Avarento” – cuja última encenação foi interrompida por motivos de saúde e encerrou sua carreira em 2006. Em 19 de outubro vinha ao mundo Dias Gomes (de “O Pagador de Promessas”), teatrólogo, também autor de telenovelas. No dia 3 de abril, Doris Day, atriz e cantora norte-americana, estrela de “O Homem que Sabia Demais”, de Hitchcock; em 24 de dezembro, nascia a também norte-americana Ava Gardner, parte da história do cinema. Por fora dessa raia, dia 8 de novembro, surge Aldemir Martins, artista plástico de quem tenho uma gravura que se encontra na casa onde meus pais moravam, no Rio: um rapaz na janela tocando violão cercado por notas musicais sem linhas de pauta.
Foi um ano bastante generoso para o cinema de arte, com o cineasta e escritor Pier Paolo Pasolini, de 5 de março, autor de “Teorema” e “O Evangelho Segundo Mateus” – apesar de ser comunista e engajado politicamente; em 3 de junho vinha ao mundo o também cineasta francês Alain Resnais, mestre da “Nouvelle Vague”, de obras-primas como “O Ano Passado em Marienbad” e o histórico “Hiroshima, Meu Amor”. Fora desta raia, o jurista brasileiro Hélio Bicudo, de 5 de julho, figura de proa na luta pelos direitos humanos e prócer dos movimentos pela democracia no Brasil.
A literatura nos trouxe o poeta e romancista americano Jack Kerouac (“Anjos da Desolação”), de 12 de março, revolucionário da “geração beat”, “cult” de uma juventude rebelde. No dia 1º de maio, nascia aqui o romancista e jornalista mineiro Otto Lara Resende, dono de um assobio de ventríloquo e quase vizinho de meus pais, com cujos filhos André e Bruno volta e meia brincávamos. Logo a seguir, em 19 de junho, o mundo conheceria o também mineiro Paulo Mendes Campos, poeta, escritor e jornalista belo-horizontino e amigo de meu pai e do Otto. Em 18 de novembro nascia José Saramago, festejado escritor português, Nobel de 1998, de cuja obra destaco “Ensaio Sobre a Cegueira”.
No canto lírico, em 1º de fevereiro, a soprano italiana Renata Tebaldi, arquirrival de Maria Callas; cantores da MPB: dia 20 de março, Nora Ney, também compositora, em 7 de abril Dircinha Batista e no dia 13 Dona Ivone Lara, figura de proa e primeira mulher autora de um samba de enredo (Império Serrano, 2012); em 17 de outubro, Luiz Bonfá, cantor e compositor da bossa nova (musicou a peça “Orfeu da Conceição”, de Vinicius). Do jazz, em 22 de abril, nasceu Charles Mingus, contrabaixista, compositor e ativista norte-americano, e no dia 29 o belga Toots Thielemans, virtuoso gaitista. Em um 13 de outubro, na música de concerto, o docente e meu colega da USP Gilberto Mendes, ícone da composição de vanguarda (música concreta e aleatória) e criador do Festival de Música Nova. No dia 16 de dezembro, o húngaro Zoltán Kodály (“Suíte Hári Ianos”), compositor, pedagogo musical e etnomusicólogo. Na política, é de 22 de janeiro Leonel Brizola, líder inconteste, duas vezes governador do RJ e RS, e em 26 de outubro Darcy Ribeiro, antropólogo, educador, escritor e político.
Em 1922 nascia também o jornal O Progresso de Tatuhy (grafia original), marco da política, da cultura e da vida na cidade de Tatuí, do Médio Tietê paulista. A ele, seu editor Ivan Camargo, aos fundadores (“in memoriam”), os mais efusivos parabéns!