Carta ao pai

Como jamais o chamei de “você” durante nossa convivência, não ficaria à vontade para fazê-lo agora. Então, previno o senhor: deve estar por aí um escritor tcheco magrelo, de aparência adoentada, que talvez reclame direitos sobre o título. Nesse caso, relembre-o que nem foi dele a ideia, e sim do editor que primeiro publicou a carta que ele tanto revisou, mas jamais chegou a enviar ao pai.

A propósito, ele era formado em direito, como o senhor queria que eu fosse. Assim, se ele tentar ler a coluna para verificar se o plagiei, não deixe; mas assegure ao dr. Franz, com a polidez reverente que sempre dedicou aos advogados, que não copiei nadinha. Melhor: reforce e enfeite a negativa, explicando que o admiro tanto que sinto calafrios ao imaginar quantos defeitos ele encontraria no texto.

 

Mas enfim: precisava de um tema, e, próximo ao Dia dos Pais, foi uma escolha natural. Ate porque só me lembro de ter escrito sobre isso, e de passagem, numa carta a uma prima de Minas – mas presumo que o senhor saiba disso, bem como do noticiário de toda a família. As dolorosas perdas, os bem-vindos novos membros (por nascimento ou casamento), os rumos de cada um na vida profissional – imagino que esteja a par de tudo.

 

Contudo, acredito (talvez só porque me deixe mais confortável) que, mesmo nessa bem informada eternidade, de tecnologia espiã superior à dos americanos, que por sinal querem mandar ao inferno quem os dedurou, acredito, repito, que não se captem pensamentos e sentimentos não verbalizados. É sobre isso, portanto, que posso escrever sem receio de lhe aborrecer.

 

Trabalho numa escola de música, como sabe. Falei a algumas pessoas de seu talento de violonista e repertório sofisticado, embora não erudito, e mencionei, com secreta vaidade, que o senhor era autodidata e nem sabia ler partituras. Mas me pergunto se é mesmo possível alguém tocar tão bem sem saber nada dessa parte, digamos, técnica. Faltou conversarmos sobre isso.

 

Fiz incursões em outra de suas paixões: os versos. Mas nada de acrósticos, pois não gosto deles. O que fiz foi escrevinhar letras de hinos municipais, que foram bem aceitas, e em cada solenidade me lembrei de seu gosto por pompas e honrarias, pensando no quanto ficaria feliz. E por falar em honras, que tal o titulo de cidadania, hein? Pois é, também fiquei orgulhoso.

 

Sendo época de homenagens, não vou falar de discórdias – mas sobre elas, saiba que hoje em dia procuro exercitar a empatia e isso me faz entendê-lo melhor e ver suas qualidades. Sinto falta em mim de sua desenvoltura para falar em público, de sua sociabilidade, da disposição para aventuras como levar um filho pequeno (eu), de ônibus, ao Museu do Ipiranga ou à lonjura do Morumbi lotado, para ver o seu Corinthians. Sinto falta do senhor.

 

P.S.: o dr. Kafka (talvez ele prefira que o chamem assim) era muito suscetível e atormentado. Por via das dúvidas, pegue leve nas piadas e trocadilhos.