Canção para Mandela





Eu queria compor uma canção para Mandela. Mas como escrever para um poeta, artista de tantas vidas, logo o bardo das multidões de humilhados e ofendidos? Só um poeta encara com um sorriso a transferência para a prisão Victor Vester, aos 70 anos de idade. Naquela altura, a África do Sul já vivia uma situação-limite, aproximava-se o romper da bolha que daria início ao fim do preconceito, do famigerado “apartheid”, da segregação desumana e total entre irmãos. O ministro da Educação Willem de Klerk, naquela época, já prenunciava ser impossível manter por mais tempo a situação, insustentável que estava.

Qual a canção teria a medida de Mandela? O ex-ministro De Klerk assume a presidência e já anuncia a libertação do líder para o princípio de 1990. Cada minuto de espera deve ter pesado como um fardo sobre as costas amarguradas. O CNA (Congresso Nacional Africano, partido da maioria negra) e outros, são declarados oficiais, e é assinado um pacto que declara fim à violência e à exclusão, festa que levou Mandela às ruas em meio a multidões de centenas de milhares de pessoas.

Esse garoto negro, após 27 anos de prisão degradante e aos 76 anos de idade – preso político de verdade! – conquista a presidência da República em 1994, nas primeiras eleições livres em solo sul-africano. Sua posse foi prestigiada por um grande número de autoridades mundiais, de braços com uma imprensa que incensava a festa: uma das maiores conquistas dos negros na história. Em seus discursos, Mandela e De Klerk trocaram elogios, ambos Prêmio Nobel da Paz no ano anterior. O primeiro presidente negro da África do Sul não canta o domínio de sua raça sobre outra, e sim “uma nação arco-íris, em paz consigo mesma e com o mundo, uma sociedade onde todos possam andar de cabeça erguida e sem receios”.

Como compor uma canção para o homem dessas palavras, sua presença, sua pura poesia? “De um dramático desastre humano que durou tempo demais deverá nascer uma sociedade que será o orgulho de toda a civilização”, disse, e em quase versos, as raízes de seus compatriotas, “tal qual as mimosas e o lindo jacarandá de Pretória. Somos levados pela alegria e entusiasmo quando a relva fica mais verde e as flores se abrem”. Quem ousaria, depois da emoção daquele discurso, compor para Mandela?

Ouça o canto das palavras pacificadoras do maior líder negro desde sempre: “Chegou o tempo de curar as feridas, chegou o tempo de preencher as lacunas que nos separam uns dos outros, chegou o tempo de construir”. “Conseguimos galgar as últimas etapas do caminho para a liberdade em condições de paz”. Como essas sábias palavras ungiram corpos e mentes sofridos, povos dominados e divididos por seus opressores, segregados até por diversos idiomas e crenças religiosas, desde a primeira bandeira holandesa fincada em seu solo, e depois pelos flamencos, franceses, alemães e britânicos.

O que deve cantar a poesia para quem soprou aos ventos que chegara a hora da vitória, já acalentada pela visão de outro grande líder negro, Martin Luther King, Jr., o homem que teve um sonho. O que cantar para quem proclamou em tom poético “que a justiça seja a mesma para todos, que a paz exista para todos, que haja trabalho, pão, água e sal para todos” (N. do A.: o índice de desemprego no país ainda é de 25%). “Que nunca, nunca mais este país magnífico reviva a experiência da opressão de uns sobre outros, nem sofra a indignidade de ser o pária do mundo. Que o sol jamais se ponha sobre uma realização humana tão brilhante. Que Deus abençoe a África!”

Ainda é muito pouco. Houve muito sangue, suor e lágrimas, mas ainda é muito pouco. O canto de Luther King ainda ecoava, com sua voz entoada de pastor luterano, quando a maior nação do mundo elegeu um outro negro presidente, Barak Obama. Ainda é pouco. Cuba ainda é um país de negros e miscigenados, condenados primeiro pela exploração norte-americana e a ditadura de Fulgêncio Batista (1901-1973), mas o regime cubano ainda não permite a aproximação de negros ao poder, o que é natural dos regimes de exceção: o privilégio das castas que controlam e não largam o poder no país. O Brasil tem uma população negra monumental, 97 milhões, segundo o Ipea, 6,5% acima dos brancos. Como diria Rousseau (1712-1778), nascidos livres, sim, mas por toda parte acorrentados.

Cotas e bolsas ajudam, mas são curativos, não aplacam a doença, lucra mais quem as concede do que o futuro em que chegará “o tempo de curar as feridas, (…) o tempo de preencher as lacunas que nos separam uns dos outros, (…) o tempo de construir”, como disse Mandela. Nossas democracias de fachada, de soluções aparentes, precisam de líderes como ele, que nos mostrem o caminho. E se democracia passa por igualdade racial, ela clama por justiça, por isso deve se aproximar a hora de o Brasil também ser presidido por um negro, como foi na África do Sul e é nos EUA. Um negro eleito por todos, irmãos de cor, brancos e mestiços, para que “a justiça seja a mesma para todos, que a paz exista para todos, que haja trabalho, pão, água e sal para todos”.

Mesmo tendo conhecido apenas pela imprensa o líder que homenageamos nesses dias, é muito difícil escrever qualquer canto para um poeta apaixonado. Pois então descanse em paz, Mandela, e divida conosco o precioso silêncio da tua esperança, e que seja o mais melodioso e sonhador silêncio.

(As citações entre aspas foram extraídas do histórico discurso de posse de Mandela na presidência da África do Sul, em Pretória, em 10 de maio de 1994)