Fosse somente a busca pela sustentação de sua “liberdade” de trabalho o único desafio da imprensa (mundial) neste momento, a tarefa já não seria pequena.
Contudo, o movimento antidemocrático presente em várias partes do globo e marcado pela devoção a ditaduras e à violência como solução a todos os problemas, torna o ofício de informar ainda mais delicado – e perigoso.
Em um mundo menos anormal – quase distópico -, o problema da imprensa deveria ser apenas a necessidade de sobrevivência frente às redes sociais, que são, sim, excelentes meios de “comunicação”, mas péssimos de “informação”. São coisas diferentes.
As onipresentes fake news estão aí para o provar. Portanto, caberia à imprensa “tradicional” tão somente lembrar às pessoas que é fundamental diferenciar “fatos” de “versões”, quando não de mentiras deslavadas).
Com isso em mente, nenhum cidadão se deixaria enganar pela inconsequência, manipulações e más intenções a marcar a grande maioria do fluxo de comunicação das redes sociais, entendendo-as, então, muito mais como meios de diversão que de informação – para a tomada de decisões sérias, como o voto, por exemplo.
Porém, antes disso, a imprensa chegou ao ponto, absurdo e grotesco, de ter de se preocupar com a integridade física de seus profissionais, não raramente agredidos em público, especialmente quando em trabalho junto a aglomerações.
Claro, são jornalistas vítimas justamente desse movimento golpista, que, não por acaso, quer fazer crer que a imprensa é inimiga do país, embora claramente não o seja.
Na verdade, a imprensa sempre estará contra não aos países – sejam quais forem -, mas avessa às ditaduras, e a elas, antecipadamente, estará se contrapondo. E é isso que justamente incomoda os idólatras de populistas autoritários, fanáticos e torturadores.
Recente episódio envolvendo Míriam Leitão, da Globonews, e o deputado Eduardo Bolsonaro exemplifica muito bem a situação: por rede social, ele debochou do fato de a jornalista ter sido torturada durante o regime militar (detalhe: quando estava grávida, inclusive).
O deputado comentava sobre um artigo da jornalista publicado em O Globo, dizendo que ele ainda estava com “pena da cobra”. Míriam (repetindo, “grávida”!) havia sido presa em uma cela com uma cobra dentro, para aterrorizá-la…
Isso não é fake news, é parte real da história do país – de um “tempo” que, de maneira tão inacreditável quanto camicase, muitos querem de volta…
Afora a falta de empatia do parlamentar (nada novo, infelizmente, para quem sequer derramou uma lágrima por mais de 660 mil mortos pela Covid), o episódio é muito significativo para os atuais desafios da imprensa e, consequentemente, para o próprio futuro do Brasil.
Aliás, se há algo – um que seja apenas – de familiar nessa postura obscura, somente a de que, quando se trata dos “nossos”, àqueles “de nossa casa”, aí não há Constituição, não há leis, não há “Justiça”.
Exemplo: em um mesmo país onde um cartunista é denunciado pelo Ministério da Justiça como alguém a atentar contra a “segurança nacional” por causa de um desenho, um deputado que ameaça tirar as maiores autoridades do Judiciário de seus lugares na base do chute é “perdoado” simplesmente por ser “chegado do chefe”, do “paizão da família que quer a democracia em trapo”.
É aquela velha história “familiar”, de que, para os meus, tudo; para os outros, a lei” … Esse tipo de política pode ser muitas coisas, menos realmente familiar no bom sentido, e menos ainda comprometida com o real Estado democrático de Direito.
Ou seja, neste caso, se você é do time do clube de tiro, pode sair matando que o perdão te espera; se, contudo, buscar a solução dos problemas do país por meio de uma ONG de direitos humanos ou se fizer uma piadinha “perigosa”, pode esperar a bala da (in) Justiça te acertar na testa – ou, na melhor das hipóteses, ser levado a uma cela para conhecer a tal “coitada da cobra”…
E se, por exemplo, um filho teu, que não foge à luta pelo bem da paz, da fraternidade e da real Justiça, resolve, daqui a pouco, “abrir a boca” contra a opressão de uma eventual ditadura?
Seria o caso de aceitar a pancadaria nele, em nome dos “valores tradicionais”, dos “ideais conservadores”? É esse mesmo o país em que se quer viver, é esse o país ideal a prepararmos hoje para nossos filhos e netos viverem amanhã?
Já passa da hora de olhar com (muita) atenção quem faz uso dos dispositivos que somente a democracia tem para tentar acabar justamente com ela; quem se diz “de família”, mas age sorrateiramente como bandido; quem usa o nome de Deus em vão, para justificar apropriação indébita, discriminação e agressões – algo francamente nada cristão.
Os protestos aqui registrados acontecem inspirados no Dia da Liberdade de Imprensa, (mal) celebrado em 3 de maio. E mal mesmo, porque o Brasil, entre 180 países, ocupa a 110ª posição no ranking que mede a condição de trabalho “livre” da imprensa, efetivado pela ONG Repórteres sem Fronteira.
O resultado indica leve avanço em relação ao ano anterior, em que o país estava em 111º, o que não chega a ser reconhecido como progresso real pela organização.
“Cada vez mais visíveis e virulentos, ataques públicos enfraquecem a profissão e incentivam processos abusivos, especialmente contra (profissionais) mulheres”, diz trecho do material. Há sete anos, o Brasil ocupava a 99ª posição do ranking.
Em situação pior, claro, somente nações abertamente “torturadas” pelo autoritarismo, como Cuba (173ª posição), Nicarágua (160ª), Venezuela (159ª) e El Salvador (112ª). Todas são mencionadas como “áreas de preocupação” pela ONG.
Ao todo, a entidade aponta que 73% dos 180 países avaliados a cada ano vivem cenários muito graves, difíceis ou problemáticos —o Brasil está entre estes últimos. A proporção é idêntica à da edição anterior, mas o número de nações onde a situação é muito grave (a categoria mais alta) passou de 21 para 28.
“Países que convivem com regimes autoritários ou nos quais há enfraquecimento da democracia foram destacados pela RSF, que chama a atenção para a polarização nos ambientes internacional e doméstico, estimulada pelo aumento da desinformação”, ressalta a Folha.
“A Rússia de Vladimir Putin, 155º país da lista, é um desses casos. A organização aponta que a invasão do território da vizinha Ucrânia foi orquestrada, em partes, com base em uma guerra de propaganda promovida pelo governo, o que deu novo ímpeto para cercear o trabalho da imprensa profissional”, acrescenta o jornal.
“Todos os canais de televisão independentes privados estão banidos do ar, com exceção dos canais de entretenimento a cabo”, diz o material.
“A criação de um arsenal midiático em alguns regimes autoritários priva os cidadãos de seu direito à informação e contribui para o aumento das tensões internacionais que podem levar às piores guerras”, afirmou o secretário-geral da RSF, o francês Christophe Deloire.
Em todo o mundo no ano passado, de acordo com o relatório, 25 jornalistas foram mortos e 480 estão presos atualmente — China (120), Mianmar (69) e Belarus (36) lideram em números de detenções.
Somente oito países são classificados como em boa situação em relação à liberdade de imprensa (todos democracias reais): Noruega —a líder da lista—, Dinamarca, Suécia, Estônia, Finlândia, Irlanda, Portugal, Costa Rica e Lituânia. A última do ranking é a ditadura da Coreia do Norte.
Para resumir, seria mais ou menos assim: brasileiros, vocês querem viver no futuro em uma Noruega ou na Coreia do Norte? Fica a dica para as próximas eleições.