A boemia, com seu charme discreto e percalços, perigos e tragédias, não é privilégio de artistas dos tempos atuais. Shakespeare, em seu “Sonho de uma Noite de Verão”, comédia de 1535, satirizava a boemia, e reclamava dos rabequeiros – do árabe “rabab”, antecessor do violino, ancestral da nossa rabeca. Disse que os músicos não passavam de bêbados contumazes, e a única coisa que sabiam fazer bem era discutir quem pagaria a próxima cerveja.
Johanness Bach, instrumentista e compositor da numerosa família de Johann Sebastian, foi morto a golpes de espada em 1635, junto a alguns colegas músicos. O autor dos assassinatos foi um certo capitão sueco, que se derramou sobre uma poltrona, inteiramente bêbado, durante uma festança na casa de um rico comerciante de Erfurt. O oficial havia tomado muito além da conta – como, de resto, boa parte dos convivas e músicos. Depois de cochilar durante a apresentação, o oficial acordou de súbito com algum pesadelo, julgando em delírio estar sendo atacado por inimigos, que empunhavam suas armas, digo, arcos e instrumentos. Desferiu golpes para todos os lados, sem mal ver quem lhe aparecia pela frente.
Em 1715, um certo “chantre” (mestre de capela, maestro) Sicca chegou a denunciar seus músicos às autoridades locais porque chegavam sempre bêbados aos ensaios. Os acusados, em sua defesa, alegaram que tudo não passava de intriga do chefe, já que Sicca teria roubado um Te Deum (hino religioso) por eles composto, e no ensaio seguinte passaram a agredi-lo em revide.
Um corte de cinema de volta ao futuro: algumas figuras da boemia nacional, incluindo tantos músicos, eram figuras tão populares quanto o saci-pererê para o caipira das roças brasileiras. Vou lembrar-me de alguns, agora, estava lhes devendo uma homenagem. Ion Muniz (1948-2009), que espatifou seu saxofone contra o meio-fio em NY. Os trombonistas Maciel e Constâncio, da famosa big band “Mela-Cueca” dos dancings, o folclórico baterista Edison Machado (1934/90), que protagonizou um sem-número de episódios. Ele foi o criador daquela batida de bossa nova, marcando o ritmo com a baqueta no contratempo – aquele par de pratos acionado com o pé esquerdo -, som que tem a cara e o jeito da bossa nova do lendário Beco das Garrafas, em Copacabana.
E quem criou o toque lateral da baqueta esquerda no aro metálico da caixa (ou “tarol”, no popular), foi Milton Banana (1935-99), a pedido de João Gilberto, cujo suave violão precisava de bateria com volume de uma caixa de fósforos. A dupla Machado-Banana criou a histórica bateria imitada no mundo inteiro, dando cara à bossa nova.
Edison era maluco: se alguém dizia que ele errou, gritava nunca erro, vocês é que erram juntos! Apesar de admirado pelos músicos, o baterista foi sendo gradualmente banido da noite carioca. Mudou-se de mala e cuia para Nova Iorque, onde tudo é possível e permissível entre os músicos, dando enfim vazão à sua personalidade e estilo inconfundíveis. Quem se lembra daquele memorável solo polirrítmico (diferentes ritmos simultâneos) de bateria na música “Leila” do disco “Minas”, do Milton Nascimento, uma atuação impagável? Morreu e foi esquecido, exceto para os que o ouviram ou conheceram – como eu, que tive a felicidade de até “brincar” com ele.
Entre os contrabaixistas, o José Roberto, “Zerró” Santos, é um caso à parte. Radicou-se em São Paulo, vindo do Rio, depois de largar sua Belém Natal. Certa vez, deixou o imortal Bill Evans surpreso, no Antonio’s, do Rio, acompanhando de orelhada as intricadas harmonias do pianista americano, os enormes dedos espalhados no teclado, um jazz temperado com impressionismo francês. Com o bar cheio graças à ilustre “canja”, Evans virou-se para trás para ver quem era aquele maluco que fazia aquilo assim “by heart” (de ouvido).
Zerró, chegado do Pará ao Rio em que o conheci e curtimos muita música, às vezes passava por necessidades. Depois, boate após boate, buscando o pão nosso de cada dia, às vezes deixava seus dedos quase em carne viva, dizia curá-los com sal grosso. Lembrava até “Morte e Vida Severina”, do poeta João Cabral: “fazendo dos dedos isca para pescar camarão”. Nos piores dias, fazia troça dizendo que havia comido “sanduíche de pão com pão”. Após algumas noites insones e, sob o efeito de alguma bebida, parecia ter dificuldade de atravessar a rua: esbarrava em um carro, voltava, esbarrava de novo…
Finalmente, em momento de conflito espiritual, disse que iria largar a música para ser padre. Logo voltou à noite carioca, mas desistiu e mudou-se para São Paulo, onde já acompanhou metade dos cantores e cantoras brasileiros e lidera sua própria big band, que leva seu nome. Um dia teve o desplante de me pedir aulas de música. Mas logo você, um mestre, perguntei. Técnica tardia, com certeza um risco à sua musicalidade já consolidada.
Uma proeza de ouvido tem o acordeonista Caçulinha, que não bebe sequer um guaraná “caçula” (não resisti). Há uns 20 anos, gravávamos em estúdio um disco de arranjos do grande Luis Arruda Paes, formando uma pequena orquestra. Durante a gravação, aquele baixinho floreava os arranjos nos ensaios. Hora de gravar “à vera”, cutucou-me e pediu que lhe dissesse a hora de parar de tocar – não era adepto da leitura musical. Piadista inigualável, acho que o Caçulinha pode acompanhar até o zumbido de uma mosca. Genial, e todos devem saber disso. Fica neste texto uma homenagem geral aos músicos com ou sem a chamada “manguaça” – “boêmios de vida”, da Idade Média até hoje.