Aquele que é considerado um dos grandes gênios da música, se não o maior, Ludwig Van Beethoven (1770-1827), foi acometido, no auge da carreira, de grave e progressiva surdez, aliada a problemas mentais. As desventuras de Ludwig tiveram origem ainda menino, volta e meia espancado pelo pai, que queria vê-lo criança-prodígio e fonte de renda, tal qual Mozart. Não tinha a pirotecnia, a versatilidade do “Pequeno Mágico”, e dizia criar com extrema dificuldade. Ao contrário do vienense, não tanto tempo depois, Beethoven veio a compor suas obras mais representativas, como a Sinfonia n° 3, “Eroica”, aos 34 anos, quase a idade em que Mozart morrera, deixando-nos vasta obra. (Mário de Andrade se referia a Ludwig como Luís de Beethoven, costume de nacionalista. Poderia até ter-lhe traduzido o sobrenome: “Luís de Beterraba”).
Beethoven foi um revolucionário nas ideias e na música. Na questão da forma, trocou uma pacata dança de salão do período clássico, o minueto, por uma outra mais viva e serelepe, o “scherzo”, uma brincadeira, troça. O scherzo já existia, mas a troca do minueto é da lavra de Ludwig, consumando sua originalidade. Na famosa Sinfonia n° 5 mais uma vez inovou, acrescentando os trombones no último movimento. Na gloriosa n° 9 deu de presente ao mundo, no último movimento, o acréscimo de um enorme coral e cantores solistas: “Ode à Alegria”, sobre poema de Schiller, páginas que marcaram a história da música e abriram caminho para outros grandes sinfonistas.
Algumas inovações de Beethoven foram mal recebidas. No primeiro ensaio da 5ª Sinfonia, popular no Brasil pelo comercial de aparelho de barbear – o tchã-tchã-tchã-tchã -, o tema inicial foi recebido como piada por músicos e analistas: “aquelas quatro notinhas”, gracejaram. Um crítico berlinense disse que nunca ouvira coisa tão desagradável, pobre em melodia, “um ruído sem arte alguma”. Mas o instinto revolucionário da música do compositor se estendia às paixões republicanas. Por isso mesmo, dedicou a Napoleão Bonaparte sua terceira sinfonia, “Eroica”. Mas quando soube que o francês havia sagrado a si próprio imperador, a admiração caiu por terra. Com ódio, riscou impiedosamente a dedicatória da capa da partitura, rasgando-a.
São misteriosas e muito romantizadas as paixões de Beethoven, entre elas a famosa “amada imortal”. Houve quem defendesse que havia um mistério, como Bernard Rose expõe em seu filme, “Immortal Beloved”: a luta desesperada pela guarda de seu sobrinho menor, Carl, após a morte por tuberculose de seu irmão Johann. Pega carona aí mais uma teoria de que Carl, tão mimado pelo compositor, teria sido, na verdade, filho do próprio Ludwig com a cunhada Joanna. Na verdade, os grandes nomes da arte são terreno fértil para todos os tipos de ilações e especulações, e é difícil saber se existe ou não, ao fundo delas, a chamada “verdade verdadeira”.
Beethoven era de um temperamento insuportável. Brigava com todos, despertava antipatias e deixava de se comunicar com o mundo, ensimesmado e entregue aos sons indescritíveis gerados pelo seu ouvido interior, no caótico inferno particular em que a surdez e a insanidade o submergiam. Era de um mau-humor e pessimismo extremos: passeando pelos jardins arborizados de Viena, olhava para os arbustos e sebes cuidadosamente aparados, e chamava-os poodles, aqueles cachorrinhos peludos.
Certo dia, braços dados com o amigo e escritor Goethe, costume da época, comentou que os muito bem cuidados arvoredos mais pareciam um bando de carneiros mortos. Tinha o costume de rabiscar música em qualquer papel ou pano que pudesse encontrar, cantava e resmungava sozinho pelas ruas – sem falar em quando arremessou ovos no cozinheiro quando não lhe agradou a comida. Durante seus estudos, refrescava a cabeça e as mãos com uma jarra d’água que deixava ao lado do piano. E molhava o soalhado, para desespero do senhorio.
Por tal comportamento e mau-humor, mudou-se tantas vezes de residência que, ao reencontrar um velho conhecido, este lhe perguntou para onde deveria escrever, uma vez que nunca tinha resposta. Ludwig disse-lhe é simples, basta endereçar “Beethoven, Viena”. Sabia-se famoso, mas não se importava tanto com isso. Por seu comportamento agressivo e volátil, além de admirado Ludwig foi também odiado.
Com a mesma paixão buscava patamares inexistentes de perfeição na música e no sentimento, conceitos que significariam talvez a mesma coisa em sua loucura – a obra e o amor perfeitos nunca encontrados. Restaram sobre uma suposta paixão três plangentes cartas apaixonadas, achadas após sua morte. Escritas por ele mesmo, não tinham dedicatória ou destinatária e, pior, nunca foram enviadas. Beethoven deixou tudo o que criara, além da bela poupança amealhada – para desespero de seus parentes que sonhavam com uma mordida no testamento dele -, em uma distribuição confusa num texto alucinado escrito durante um tratamento em Heiligenstadt.
Foi nesse sofrimento em parafuso que Beethoven compôs alguns de seus melhores quartetos de cordas e a magistral 9ª Sinfonia, entre outras. Empregava bugigangas de todos os tamanhos e tipos para amplificar os sons, como espécies de cornetas.
(Peguei emprestado para completar o título deste texto parte do de um livro do autor de “A Escolha de Sofia”, William Styron, “Perto das Trevas”, um relato confessional sobre sua experiência, da neurose à depressão, da demência à recorrente ideia de suicídio, tal qual Beethoven.)