Henrique Autran Dourado
“Os anjos e os arcanjos, os querubins e serafins, não o cessam de louvar dizendo em uma só voz: santo, santo, santo, é o Senhor Deus do universo. Céus e terras estão cheios de vossa glória. Hosana nas alturas”. Oração dos tempos de criança, despertou-me curiosidade sobre os anjos (nos EUA, 70% dos habitantes creem neles!). A palavra vem de “ággelos”, em grego, de onde “angelus”, em latim. São personagens celestiais de tão grande vulto que no século 4 teólogos criaram a hierarquia angelical e sua organização. São nove entidades, entre elas os citados anjos, arcanjos, querubins e serafins. Um anjo com uma espada levou a mensagem de expulsão de Adão e Eva do Paraíso, e um outro abençoado teve a missão de levar à Virgem Maria a notícia de que ela daria vida a Jesus, gestado em seu ventre. Entre os anjos, sete se destacam: Gabriel, Miguel, Rafael, Raguel, Remiel, Sariel e Uriel (SILVA, Deonísio. “De onde vêm as palavras”. RJ: Lexicon, 2014, 17ª ed.). “Angelus” é também a tradicional oração do papa no Vaticano: “Dominum nuntiavit Mariae” (“O anjo do Senhor anunciou a Maria”).
Em nossa música e poesia, eles também existem, e mais do que nunca são irreverentes: “Quando nasci veio um anjo safado / o chato do querubim / e decretou que eu estava predestinado / a ser errado assim” (“Até o Fim”, Chico). Outro desses anjos arteiros é o de Drummond, em “Poema de Sete Faces”: “Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra / Disse: Vai, Carlos, ser gauche na vida”. Bem aqui na Terra, os “Guardian Angels” (Anjos da Guarda), organização fundada em 1975 em NY, tinham, entre suas missões, passear em grupos pelo metrô de NY evitando assaltos, ajudando idosos, crianças perdidas. Vestiam jaquetas que lembravam outros anjos, os “Hell’s Angels” (Anjos do Inferno), briguentos em suas possantes motos Harley Davidson, que faziam arruaça por onde passavam. Fundado em 1948, na California, EUA, os HA tinham como primeira exigência que o “Angel” possuísse uma Harley 1.200 cc, uma máquina com força de touro e rugido de leão. Sua “capital”, Los Angeles, segunda cidade dos EUA com 4 milhões de habitantes, foi tomada dos indígenas para a Espanha por Juan Rodríguez Cabrillo em 1781, de onde o nome em espanhol da metrópole (em português, “Os Anjos”).
No dia 4 de abril, logo abaixo do título e antes mesmo do “headline” da capa – “A barbárie vai à escola” -, o jornal O Estado de São Paulo publicou uma lista apavorante: “5/4/23 Blumenau, Sta. Catarina, 4 mortos, 5 feridos; 23/7/23 São Paulo, 1 morto, 4 feridos; 25/11/22 Aracruz, ES, 4 mortos, 13 feridos; 26/9/22 Barreiras, BA, 1 morto; 4/5/21 Saudades, SC, 5 mortos; 13/3/19 Suzano, SP, 8 mortos, 11 feridos; 6/11/17 Alexânia, GO, 1 morto; 20/10/17 Goiânia, GO, 2 mortos, 4 feridos; 26/9/11 São Caetano do Sul, SP, 1 morto; 7/4/11 Rio de Janeiro, RJ, 12 mortos, 22 feridos; 29/1/03 Taiuva, SP, 1 morto, 3 feridos; 28/10/02 Salvador, BA, 1 morto”. Não seria preciso explicar, mas este é um gráfico por extenso dos ataques, da violência, dos assassinatos e das chacinas que vêm acontecendo em escolas de crianças, aparentemente sem explicação alguma.
No dia 8 de abril, em Blumenau, na creche Cantinho Bom Pastor, nove crianças foram atingidas por facadas e machadinha, fazendo de quatro delas vítimas fatais. Uma, com escoriações e a mandíbula trincada, conseguiu escapar. Recebeu seu pai, em desespero: “Pai, estou vivo”. Este o breve desdobramento do final do último lamentável episódio. Nos funerais das crianças faziam flutuar estrelinhas, como fosse cada um dos anjos perdidos. Sim, a palavra mais ouvida foi “anjo” – pela inocência das crianças, pela pureza de suas tenras idades, pelo que representam em um país tomado pela violência, belicismo e mortes, ataques em geral sem qualquer coisa que lhes dê fundamento, além de simplesmente matar. São maníacos contagiados pela onda que preocupa vários outros países: entre meus contatos nos EUA, sei que eles não apenas compartilham das nossas dores, há uma espécie de “mea culpa” sem razão alguma, por uma prática importada de lá. Sim, são anjos, salvos do mal que os atacou. Ou levados por outros anjos onde se encontrarão com tantos anjos-crianças para sempre. Resta aos que ficaram, seus pais, às comunidades, o medo, o medo, o medo.
O Brasil, com seus 5.570 municípios, não poderia ficar à parte desse pânico. Tatuí, por exemplo, com seus 124 mil habitantes (2021), chegou a estampar na capa do jornal O Progresso (9/4/23), encabeçando as notícias: “Ameaças alteram rotina das escolas locais”. Noticiou como reação local um encontro da Polícia Civil, PM, GCM, secretários de Segurança e Educação, além de docentes e gestores. Ainda na capa, um cartaz encontrado na escola “José Celso de Mello”: “Todo mundo dessa escola vai morrer”. Segundo Telma Vinha, pesquisadora de violência escolar, câmeras, detectores de metal e segurança por si não são soluções, ajudam mas não vão ao fulcro da questão: “Traz segurança para a sociedade, mas não (…) diminui o discurso de ódio” (Estadão, 9/4/23). Há fanatismo, há psicopatia, há os que querem seu tempo de fama nas mídias sociais e na imprensa, a que custo for.
Na Nova Zelândia, onde 51 pessoas foram mortas, foi criada em 2019 a Christchurch Call to Action, que hoje reúne 120 governos, ONGs e empresas tecnológicas. Um supremacista branco matara meia centena em ação transmitida online por todo o mundo! Nesta luta, é preciso entendermos antes as mentes do que os atos. A herança política do que os fatos. E proteger os nossos anjos.