Água!

Henrique Autran Dourado

Um samba: Água de beber, água de beber, camará… Toada: água de beber, bica no quintal, sede de viver tudo. Das mais belas: são águas de março fechando o verão, é a promessa de vida no seu coração; chove, chuva, chove sem parar; traga-me um copo d’água, tenho sede, e essa sede pode me matar… Ó chuva, vem me dizer, se posso ir lá em cima pra derramar você… Lamentoso: E choveu uma semana e eu não vi o meu amor, o barro ficou marcado aonde a boiada passou; a noite está tão fria, chove lá fora, e essa saudade enjoada não vai embora; esta cidade, que ainda é maravilhosa, tão cantada em verso e prosa (…) qualquer chuva causa enchente. Com suingue: chove, chuva, chove sem parar, pois eu vou fazer uma prece pra chuva parar de molhar o meu divino amor.

Caiu tanta água, mas tanta, que só com oração para falar com ela – seja para agradecer, seja para pedir uma trégua. Foi água molhando as plantações e nossas plantinhas, mas um volume fenomenal causou tragédias pelo país: Rio, Bahia, Minas…Pessoas desabrigadas às centenas, muitas mortes. A água é implacável, tanto que Deus confidenciou a Noé, um homem de coração puro, que um imenso dilúvio sobreviria, cobrindo o mundo até que todos os seres vivos desaparecessem. E mandou-o construir uma enorme arca, grande o suficiente para suportar a longa jornada do castigo. Queria que Noé sobrevivesse ao dilúvio, para depois recomeçar o repovoamento da terra e a vida animal. Com detalhes: “Você fará uma arca em madeira gofer, depois divida-a em compartimentos e revista-a de betume por dentro e por fora” (Genesis, 6:14). O dilúvio seria um grande castigo pelo mal que imperava na terra, e a arca uma tentativa de recomeçar tudo.

É sabido que tomar coalhada e beber água “dá diabete”, e que ao passar a roupa não se deve beber água fria para não estuporar, e uma desgraça pode acontecer com quem sai do banho quente e pega vento! (Minha bisavó usava muito da água panada – água com pão dissolvido – a fim de curar seus parentes. Todos criam, e às vezes dava certo: a panaceia é muleta amiga ciência). A tradição popular diz que a água serve tanto para o bem quanto para o mal (e como, eu diria!), que a sombra dos mortos não pode atravessar a água, e que o feitiço em um objeto é desfeito quando ao atirá-lo n’água. Aos que dormem com um copo d’água no criado mudo, antes de bebê-lo devem agitá-lo – sabe-se lá o porquê. Se for beber na hora de dormir, é necessário abanar a água, dizendo antes “acorda, Maria”; e quem sai de casa para a natureza antes de a aurora chegar deve, antes de beber dos rios, atirar uma pedra n’água, para acordá-la (GARCIA, Penha. “Etnografia da Beira”. Ed. Império: Lisboa, 1963).

Não se deve beber água com um candeeiro na mão! Quem o fizer pode emudecer e cair morto, e nem se deve olhar o rosto refletido na água de uma poça porque o demônio pode arrastar a pessoa às profundezas do inferno. Rapazes, água que lavou camisa de uma mulher, se bebida fará com que vocês abandonem outros amores e se apaixonem pela dona da camisa! (FERREIRA, M. C. “Superstições”. SP: Edicon, n/d).

Na música clássica, temos a bela “La Cathédrale Engloutie” (A Catedral Submersa), de Debussy, que era magistralmente interpretada ao piano pela nossa Guiomar Novaes. Magnífica é a pomposa “Water Music” (Música Aquática), de Händel, composta sob encomenda do rei George I especialmente para ser executada sobre o rio Tâmisa, em Londres. Apresentada pela primeira vez em um cabalístico 17/7/1717, tem a duração aproximada de uma hora. A corte seguiu em uma barcaça, enquanto outra levava cerca de 50 músicos, ambas as naves flutuando sem remos ao sabor da lenta correnteza. O trajeto começou no Whitehall Palace e terminou em Chelsea, a cerca de cinco quilômetros de distância, um longo e encantador passeio musical. Além da Catedral de Debussy, com aquela magia da sedução dos impressionistas, Ravel compôs “Jeux d’Eau” (Jogos d’Água), que tem uma memorável interpretação do virtuose Claudio Arrau ao piano. Chopin escreveu um lindo prelúdio, o nº 15, Op. 28, “Raindrop” (Gota de Chuva), e Schubert (“Die Schöne Müllerin”, D 795, nº 20) “Des Baches Wiegenlied” (A Canção de Ninar do Riacho), uma obra magnífica para piano e contratenor (voz de homem que soa como o contralto feminino).

Água é o começo de tudo, não há vida sem ela. Quando cientistas encontram vestígios de água em algum planeta ou satélite, é porque ali pode haver ou ter existido algum tipo de vida. Mas hoje têm acontecido fenômenos de extremas secas e calor ao mesmo tempo que tempestades em lugares nada usuais – rompem-se barragens em Minas e enchentes alagam na Bahia. Enfrentamos um aquecimento global, conforme explica a Drª Cíntia Leone, ambientalista e divulgadora científica, jornalista e doutora em ciência ambiental pelo Procam/USP, fazendo coro aos cientistas do mundo todo. Ela sintetiza: “A mudança climática é a principal notícia do nosso tempo. É fundamental informar o público sobre seus desdobramentos sociais, políticos e econômicos” (UOL Economia, 10/02/2022).

No Brasil ocorre um retrocesso: ignora-se o perigo da mudança climática, e hoje devasta-se mais do que nunca. A floresta cede ao agronegócio desenfreado e ao tóxico garimpo, faz-se vista grossa ao extrativismo insano, e enquanto uma pandemia nos dizima há quem exulte porque assim é mais fácil “deixar a boiada passar”. Se tivermos outro dilúvio não teremos uma nova arca, e o preço que custará a ignorância e ambição de uns deverá ser alto, muito alto para o ser humano.