Preta, brilhosa, pesada. Cabo de madeira de lei. Quando a limpava, assobiava a música do Moraes Moreira, preta, preta, pretinha, lubrificá-la era mais do que um passatempo, coisa de arte. Puxar o carro, ver se desliza bem, limpar o pente, verificar as balas (um projétil pode atravessar duas pessoas, mas se a pólvora é velha o tiro pode ser escudado por um RG no bolso, ou na palma da mão, deu no jornal uma vez).
Após o disparo de uma 765/PT 158, o gás ejeta a cápsula deflagrada e num átimo a mola do pente faz subir outra bala, daí não haver coice. Pode-se disparar uma ou sequência de até 12 tiros. Quando o modelo foi lançado no Brasil, delegados de São Paulo receberam algumas para teste. Uma delas mais tarde passou para o nome do filho de um deles, vizinho conhecido meu. Pendurado em dívidas, ofereceu-me para comprar. Levei, e com ela fui na chácara de um saudoso aluno, lá poderíamos treinar com um primo dele, militar e aficionado. Cheguei a andar com ela, coldre no sovaco, alcance da mão, não dava para ver sob o paletó.
Nos fins de semana, costumava às vezes tomar um lauto café da manhã na padaria de uma esquina da vila Mariana com meus dois filhos mais novos, então com coisa de seis e oito anos. Voltamos para casa, abri o portão automático, entrei, mas antes que a traquitana fechasse de vez um sujeito jogou-se por baixo, e, armado, anunciou o ganho, hoje talvez dissesse perdeu, caubói. Abri a casa, obedeci à ordem de acionar o portão elétrico, entraram mais três deles. Todos de ninja, menos um. Estava armada a festa.
O líder do grupo, dopado até o cocuruto, queria dólar, ouro e arma. Eu não tinha valores, só a pistola. Está no arquivo, eu disse, um dos bandidos foi buscar e só faltou beijá-la, dizendo-lhe uma gracinha. Mas foi sob a mira dela que manteve meus dois filhos pequenos, bem ao meu lado. Desmancharam os guarda-roupas, deitaram todos os quadros da casa no chão, e nada. Um deles pegou meu cartão de banco e levou a senha. O primeiro caixa eletrônico filmou, mas estava quebrado; o inverso aconteceu no de uma agência, câmera quebrada, vi depois. O cartão tinha sido bloqueado, senha danada! Tenso que só eu, devo ter passado o código errado.
Não tinham jeito de levar mais, meu carro na garagem já estava carregado com o ganho do dia: roupas, eletrônicos, TV, computadores, relógio, carteira. O que não os saciava, queriam mais. O líder ameaçou levar minha filha como refém, aí deu gosto de fel na boca, longos momentos de ódio e sangue frio. Mudou de ideia, acertou de nos encontrarmos na segunda-feira na estação Tatuapé do metrô, eu levaria uma maleta com R$ 50 mil. Combinado, trancaram-nos na cozinha (uma, duas ou mais horas? O tempo da angústia retarda até ponteiro de relógio). Peguei um telefone velho no gaveteiro, descasquei o fio e liguei na gambiarra. Em pouco tempo, um amigo abriu a porta e nos livrou. Ver a casa naquele estado de guerra foi deprimente, mas não havia de ser nada, estávamos todos ali, e vivos.
Dia seguinte, segunda-feira, lá fui eu com a mala 007 cheia. De jornal picado, como a polícia instruíra. Desci na estação, a área cercada de policiais à paisana. Polícia Civil, DOE, até a DAS (Divisão Anti-Sequestro), que geralmente só atende em casos consumados. Esperei em frente à tal carrocinha de doces, ninguém. Encostei a maleta no meio-fio como chamariz, nada. Veio um rapaz e comprou um doce, falou baixinho para mim não há nada, era só para você ficar com medo. Outro passou sussurrando que foi só para ganhar tempo, e passou um outro, baixando a ordem: vamos embora, é blefe.
Fiz o BO no 16° DP. Ante a pergunta da simpática delegada sobre a arma, se era fria, eu disse que não. Pois tanto pior, disse ela. Mas não lembro onde o porte e o registro estavam! Vou bloquear este computador e o senhor vá em casa encontrá-los. Se a arma for usada em algum crime, o senhor estará dentro. Corri, abri gaveta por gaveta, pasta por pasta, papel por papel do meu arquivo, e finalmente achei os documentos. Voltei ao DP, a delegada deu baixa na numeração, eu estava livre. Meses depois, fui informado por uma outra delegada, dessa vez do 3° DP, de que a pistola fora usada em um 157 (par. 3°: latrocínio). Mas a Justiça já custodiava a arma, eu agradecia por ter sido salvo dessa encrenca. Foram dias indescritíveis.
Passou algum tempo e minha filha mais velha me pediu para ir buscar o violoncelo dela, que estava em uma luteria de um prédio tradicional da Paulista. Fui no horário marcado, mas precisava comer algo antes, enganar a fome em um café ali embaixo. O elevador chegou, vou depois, a fome mata! Entrou um senhor com uma maleta, já estava filmado, diz o jargão. Logo entra mais outro, e mais um. Fecha a porta. O resto, já que saí do prédio ao ver uma confusão, soube pela TV e jornais do dia seguinte. Um dos sujeitos anunciou o assalto, o terceiro sacou de sua arma contra o bandido. Mas levou um tiro na cabeça, morte na hora. Detalhe: o sujeito assassinado era delegado de polícia recém-aposentado, com 30 anos de carreira. Isso com a experiência dele no uso de armas, o que seria de mim?
No plebiscito de 2005, votei com os 63,94% pelo não, que derrubou os 36,06% a favor das armas. Motivos de sobra eu tinha e tenho: este breve relato poderia ser um capítulo entre tantos que dariam um romance. De suspense e terror.
(“Adeus às Armas” é o título um romance de Ernest Hemingway, 1929. O escritor suicidou-se aos 61, com um tiro de seu próprio rifle).