(Dedicado ao José Pinto)
Dia desses, dei de ouvir de novo “Tristeza do Jeca” (melodia de 1918, poesia de 1926), do Angelino de Oliveira, consagrada por Tonico e Tinoco. Um júri da Folha de São Paulo elegeu “Tristeza” a melhor música caipira de todos os tempos! A letra diz assim, lamentosa: “Eu sou como o sabiá / que quando canta é só tristeza / (…) “Lá no mato tudo é triste / desde o jeito de falar / pois o jeca quando canta / dá vontade de chorar”.
Conheci José Salvador Perez, o Tinoco, em 2010, garoto de 90 anos em ismôque brilhante vermelho. Foi no II Torneio Estadual de Cururu, que idealizei para o Conservatório de Tatuí na Concha Acústica. Cantou sozinho (que falta do cumpádi véi Tonico, chamado lá de cima catorze anos antes). Exalava simpatia, carisma, conversa miúda e, vaidoso que só, chegou a prosear umas gentis cantadas nem tão musicais em alguma prenda bonita, sem ofender ou relar. Morreu de morte morrida em 2012, no dia de meu aniversário, só pra me dar um desgosto e deixar mais triste o Brasil naquele 4 de maio. Era o adeus de um Jeca-Tatu, criação do Monteiro Lobato no conto “Urupês”, de 1918, o ano em que veio à luz a melodia do Angelino.
De Tonico e Irvando Luiz é a toada “Triste Mudança”, sucesso na voz do primeiro em dupla com o mano Tinoco: “Carro de boi vai cantando / no alto do chapadão / é o jeca que vai mudando / (…) bagage que vai levando / só tristeza e ingratidão”. O caipira havia sido chutado pela chefia, porta da rua, serventia da casa! Parece até a história do Jó: derrubaro o rancho dele, moero até a roçada, a muié caiu matada. Desabafo de um Milton Nascimento amuado: “Que saudade eu tenho de sair / num carro de boi e ir por aí / estrada de terra que só me leva / só me leva, nunca mais me traz”. É o errar sem rumo do menestrel Vinicius no “Soneto da Separação”: “… fez-se da vida uma aventura errante”. É também o errar de Nietzsche: “Sem música, a vida seria um engano” (“Ohne Musik wäre das Leben ein Irrtum”).
A dupla Tião Carreiro e Pardinho, que se encontrou de prima em 1954 num circo de Pirajuí, dito “rio dos pirajus”, do lado paulista do Paranapanema, cantou no mesmo tom merencório “Levanta, Patrão”: “Um pobre trabalhador / pra melhorar de vida / deixou a terra querida / seguiu pra lugar distante / (…) Coitado, não teve sorte / o seu prêmio foi a morte / numa firma importante”. Êta que vida marvada, disgracêra, por que o diabo carece de cruzar o caminho torto desse jeca azarado?
É de Orchelsis Laureano e Raul Torres a “Moda da Pinga”, que estourou na voz de Inezita Barroso em 1955, sublime louvação à manguaça: “Co’a marvada pinga / é que eu me atrapaio / (…) entro na venda, dali não saio / ali mesmo eu bebo / ali mesmo eu caio”. Nem a mardição da muié, pramode fazer o canabrava de largar da tal da pinga vingou: “Despois que se embriaga / num levanto ocê”, respondida com “vô deixá da pinga / só quando eu morrê”. Inezita foi a melhor intérprete desta Moda, a veste caía bem nela: quando esteve em Tatuí, mandou carcá o mé, deu trabalho pra mais de metro já passada dos oitentinha. Coisa de melá os pé.
De Tonico e Francisco Ribeiro, gravada por Tonico e Tinoco em 1958, é “Chico Mineiro”, verdadeira tragédia, tão useira e vezeira nas modas e toadas: “Fizemo a úrtima viagem / foi lá pro sertão de Goiás / fui eu e o Chico Mineiro”. Mas o fado lhe foi cruel: “mataro meu cumpanheiro / acabou-se o som da viola / acabou-se o Chico Mineiro”. E como se tal agouro ainda não lhe bastasse, ficou marcada a fogo aquela rude lembrança (guarzim ferro que marca o couro do gado). O cúmulo da tristeza, outra mais a soçobrar um jeca: “quando vi os documento / me cortou o coração / vim saber que Chico Mineiro / era meu legítimo irmão!” Tragédia digna de Eurípides: morte, família dilacerada, destruição e, pior, a alma penada do Chico a lhe seguir qual sombra, na modorra e sofreguidão.
Meu amigo José Pinto, mestre da cantoria e do verso, cururueiro falado em todo o Médio Tietê, grande improvisador nas carreiras de A a Z, sabe poetar como só ele o ranchinho de sapé, a galinhada e o pangaré, o chão vestido de verde, coisas de pé-vermei, dizem. Mas, no entanto, sina do caipira, a felicidade arresolveu virar melancolia. Depois de pintado um quadro lindo, ele termina com dó este “Prazer de um Roceiro”, de 2016, parceria com Pedro Neves: “Coisas que na roça tinham / já estão ficando poucas / as frutinhas madurinhas / que davam água na boca / o que enfeita o ranchinho / é o cantar dos passarinhos / uma viola de pinho / o sorriso da cabocla”. Todo aquele devaneio do começo, tão lindamente descrito, vai desbotando em colorido, esvanecendo no conta-gotas da memória do capiau.
Pedi ao José Pinto que me mandasse alguma coisa sobre o Jeca, e ele me passou uma joia de poesia sobre a vida na roça. No final, desata a fazer homenagem a grandes autores e intérpretes, como Angelino de Oliveira, criador da “Tristeza do Jeca” que citei logo no começo desta prosa, uma pérola muito bem versejada: “Com a viola de pinho / recorda de Ted Vieira / canta com muito carinho / o menino da porteira / O Jorginho do Sertão / foi a gravação primeira / canta a tristeza do Jeca / de Angelino de Oliveira.” (Ted Vieira, autor de “O Menino da Porteira”; “Jorginho do Sertão”, folclore adaptado por Cornélio Pires e primeiro registro de música caipira gravado numa bolacha de 78 rpm. E é com pompa e glória que o amigo canturião encerra o seu tributo com “Tristeza do Jeca”, do Angelino).