A pianolatria vive





Grande escritor, poeta, musicólogo, ensaísta, o ilustre modernista Mário de Andrade (1893-1945), também foi diretor de cultura da Prefeitura paulistana e professor de gente como nosso maior compositor, Camargo Guarnieri (1907-1993). Andrade  cunhou o termo “pianolatria” para referir-se a esse “sarampo” brasileiro, a paixão nacional pelo piano. A lista de astros é enorme, e ilumina o céu com uma constelação: Magdalena Tagliaferro, Guiomar Novaes, Heitor Alimonda, Arnaldo Estrella, e os mais recentes (vivos ou não) Guedes Barbosa, Yara Bernette, Edson Elias, Roberto Szidon, Moreira Lima, Cristina Ortiz, Arnaldo Cohen, Nelson Freire, Diana Kacso, Fernando Lopes, entre tantos outros.

Mas de onde esse amor tão intenso pelo piano, mais distante de nossa cultura popular do que o violão? O instrumento veio da Europa, e deve sua origem a Bartolomeo Cristoforo (por volta de 1709), com seu fortepiano, maravilha de maquinário, construção e sonoridade absolutamente diferentes de seu antecessor, o cravo. No Brasil colônia chegaram os cravos, instrumento de cordas “pinçadas” e não percutidas por martelos, como no piano, de sonoridade para lá de agradável, coisa como o dedilhado de uma harpa ou um violão.

Na Minas Gerais colonial, era de bom-tom as moçinhas exibirem as prendas que fariam delas boas casadoiras  aos olhos dos pretendentes às suas cobiçadas mãos (“per questa bella mano”, diria um Mozart apaixonado naquela linda ária), além do “dote” financeiro do patriarca, claro. Isso tudo seduzia o candidato a noivo a se apresentar ao pai da jovem – de olho, claro, nas melhores posses do casamento. Esperava-se que as raparigotas soubessem fazer doces, quitutes, bolos, iguarias; bordar, costurar, serzir; falar bem, vestir-se com discrição e, por fim mas não por último, tocar cravo, fortepiano (mais tarde, o piano moderno). Esses instrumentos chegavam ao Cais do Porto do Rio de Janeiro em navios, e parte deles iria para Minas em carroças ou mesmo lombo de burro (até os pianos de armário Pleyel chegaram já em 1911 ao Teatro Municipal, em vias de ser inaugurado, nas costas de magrelos animais, como ilustram fotos da época). Ah, no passado cantar também era aquele “plus” para a moça agradar ao “senhor seu pai”, como se dizia, e encantar os pretendentes, que poderiam se deleitar com a melhor música europeia em época em que não havia em casa qualquer tipo de geringonça reprodutora de gravações.

Levando o instrumento para seus novos lares, as filhas das esposas pianistas também eram delicadamente forçadas a estudarem música, parte de uma boa formação. Após gerações, a febre foi se consolidando, e vieram os pianos Petrof, Bösendorfer, Bechstein, Grotrian Steinweg e, finalmente, os Steinway, preferidos por dez entre dez estrelas (há quem diga: “não toco piano, toco Steinway”!). Os últimos estão entre os melhores, e passaram a frequentar recitais e os conservatórios que iriam surgir na primeira metade do século (mas raros eram os Steinway, dos quais temos no Conservatório de Tatuí dois exemplares de concerto, de cauda inteira). E acaso foi aplacada essa febre da pianolatria? Arrefeceu o “mal virtuoso” que após tanto tempo contaminou milhares de mocinhas, e depois também rapazes? Já estamos no século 21, em plena era de teclados eletrônicos, samplers, sintetizadores, pianos elétricos e eletrônicos, mas o velho e bom teclado de martelos permanece mais vivo do que nunca.

Boa vitrine foi o VII Encontro Internacional de Pianistas, realizado no Conservatório de Tatuí de 8 a 11 de outubro deste ano, em tempo integral e ritmo muito intenso. Mais de 300 inscritos vieram de toda parte em busca de troca de ideias musicais e informações, bons recitais, concerto com orquestra e mesa-redonda que fizeram desse evento um marco importante também para a constatação de que a “pianolatria” se reproduz, mesmo que, de anos para cá, haja crescido paralelamente o interesse por tantos outros instrumentos, do violino ao contrabaixo, da flauta aos metais (trompete, trompa, trombone, tuba e seus “parentes”).

Todos puderam assistir a um recital de excelente Luciana Noda (profª drª da UFPB) pela manhã, Mauricy Martin (de larga experiência internacional) à tarde a simpaticíssima Beatrice Berthold (excelente pianista alemã da incensada PUC do Chile) à noite, e, no dia seguinte, mais dois recitais e um concerto com orquestra, tendo como solista Fábio Luz, que hoje faz sólida carreira internacional a partir de sua residência na Itália. Some-se a este seleto grupo a grande “dama do piano” Eudóxia de Barros, André Rangel (da Unesp, mestre pela New England e doutor), o badalado Nahim Marum e diversos outros, como George Boyd, afinador favorito das estrelas, e as excelentes “pratas da casa” Míriam Braga e Cristiane Blóes, coordenadora do evento. É piano para ninguém colocar defeito.

E não há antídoto, já que a “pianolatria” não é doença, e assim sendo não carece de cura. Sermos por ela inoculados faz-nos muito bem e não causa mal algum, fora padecer de amor pela música de alguns intérpretes. O piano foi o primeiro instrumento que levou o Brasil a ser reconhecido mundo afora, tal o contingente de virtuoses aqui nascidos. Negar a importância histórica maior do piano seria de uma burrice homérica. Quem dera tivéssemos também uma violinolatria, uma cantolatria e afins, todas febres terçãs a contagiar pelo simplesmente ouvir, coisa de emoção pura! Pois foi aqui, nesses longos dias em Tatuí, que o piano mostrou a importância que tem em nossas vidas.