A ‘nova ordem mundial’ e a ‘guerra nuclear bacteriológica’

Henrique Autran Dourado

Tendo como fundo o Palácio do Alvorada, o presidente da República declarou, literalmente (Revista Fórum, 29 outubro), que o coronavírus poderia ser uma “patologia de uma suposta guerra nuclear bacteriológica”, em que pese vírus e bactérias serem coisas absolutamente distintas: vírus não são células, são frações de proteína com material genético que precisam parasitar em uma célula hospedeira para se reproduzirem. Já bactérias são micro-organismos vivos unicelulares que se reproduzem em seu meio (resumo bem simplificado por Isabela Autran, pesquisadora da Fapesp-USP). A diferença é monumental. Fora isso, o “nuclear” na frase é peixe fora d’água.

Para colaboradores, o presidente mencionou a existência de uma “Nova Ordem Mundial”, sobre a qual ele não teceria comentários, pois “estava sendo filmado”(por quem?). Antes de prosseguir sobre a “Nova Ordem”, lembro que teorias conspiratórias do gênero têm sido reportadas desde o passado.

Olavo de Carvalho é um polêmico ex-astrólogo campineiro, autoproclamado filósofo e conhecido “influencer” quehá 15 anos vive em Richmond, Virginia (EUA), estado sulino de tradições conservadoras, cidade de uma linda universidade onde proferi palestras em 2003,próxima a Fairfax, onde me casei em 1981. Carvalho é autodidata,ou, melhor dizendo, abandonou a oitava série do ensino médio, mas logrou apresentar um curso livre na PUC/SP, “Orientação profissional segundo a astrologia”. Hoje, recebe doações e vende cursos online que lhe dão o suficiente para sobreviver. Os pagamentos eram feitos via plataforma “Paypal”, que recentemente suspendeu as transações sob a alegação de ofensas e “fake news”por Carvalho (Infomoney, 6 de agosto de 2020).

Vêm do“filósofo” autodidata boa parte das teorias abraçadas pela família Bolsonaro e seguidores da ala “ideológica”,que abraçam a ideia da Nova Ordem Mundial: estudiosos como William T. Still, um oficial aposentado da Força Aérea Americana que tem “New World Order” como título de um de seus livros (Huntington Inc., 1990). Nos textos, teorias conspiratórias para todos os gostos, desde uma suposta armação de um golpe militar para manter Richard Nixon no poder a qualquer custo e até uma contribuição substancial de Fidel Castro que o senador Mc Govern, adversário do republicano na campanha de 1972, teria recebido sigilosamente.

Mais adiante, Still aborda as sociedades secretas, entre elas a Maçonaria, introduzida e adaptada pelos colonos de algumas das 13 províncias,que nos EUA se transformaria em Freemasonry (“Maçonaria livre”). Com a República, a Freemasonry teria “feito”17 presidentes americanos até 1990, de George Washington a Ronald Reagan. E mesmo o tratado que pôs fim à Segunda Guerra, selado por Stalin, Roosevelt e Churchill,segundo Still, só teria sido possível graças às sociedades secretas, lembrando a condição de maçons dos três líderes. Com a vitória dos Aliados contra o Eixo, em 1945, a União Soviética já teria avançado sobre boa parte do continente europeu, o que geraria mais teorias conspiratórias contra o mundo “livre”. Claro, o avanço de Stalin, nada diferente das ocupações de Hitler, significaria mais um avanço da Nova Ordem,e a guerra fria dos EUA contra a URSS teria acontecido para evitar o domínio soviético.

Da cabeça de Olavo de Carvalho em sua ermida no sul do aprazível estado americano (“Virginia is for lovers”, dizem as placas dos automóveis), só poderiam germinar teorias exóticas que remetem ora à antiguidade, ora a uma “nova direita” no Brasil, em combate ao comunismo que ele próprio já abraçou no passado, segundo conta.Carvalho afirmou que havia saído do Brasil logo que Lula conquistou a presidência (na verdade,havia se mudado para a Virginia em 2005, na metade do primeiro manda todo petista).

Em 2007, os cientistas Vincent Cheng, Susanna Lau, Patrick Woo e Kwok Tuen publicaram na revista da American Society of Microbiology o estudo “Coronavírus como um agente de infecção emergente e reemergente”, em que alertavam para o hábito de populações do sul da China se alimentarem com certo tipo de morcego,o “horseshoe” (ferradura), que seria portador do vírus. E mais: mesmo advertindo que a ameaça era como uma bomba-relógio já programada para explodir, como de fato aconteceu, os cientistas não foram levados a sério.

Apropalada origem do coronavírus foi a deixa para Trump, na sua cruzada sinofóbica, culpar a China (comunista, claro!) pela Covid-19- em que pese boa parte dos produtos tecnológicos e até insumos para medicamentos dos EUA serem lá montados ou de lá importados. As teorias menos comportadas sobre uma iminente dominação chinesa do mundo difundem o temor aos comunistas – na verdade, o pano de fundo é o poder econômico, graças à inevitável e próxima, segundo analistas,ascensão do país asiático ao pódio de maior potência mundial.

A região onde Carvalho mora é terreno conservador fértil para suas elucubrações e especulações. No Brasil, a Maçonaria, trazida ainda no Império pelos portugueses e depois, prosseguindo com os republicanos, tornou-se talvez ainda mais forte e fez 12 mandatários só na chamada Primeira República (CPDOC/FGV). Mas sempre foi uma organização de paz, nada tem a ver com a temível Nova Ordem Mundial vista por Olavo, inserida no bojo de uma teoria da conspiração e de um equívoco que passam ao largo da história e da ciência fora de época e ocasião:não contribuem em nada, apenas confundem e trazem desinformação.