A informática não é, de todo, um mal

Henrique Autran Dourado

Há muitos anos li uma frase, que considero genial, de autor desconhecido, apesar das especulações de sempre: “A informática veio para resolver problemas que antes nunca existiram”. Parece anedota, mas é “verdade verdadeira”, como diz o popular, figura de linguagem usada até mesmo no meio jurídico. Basta pensar na informática em si, um campo em que a cada hora se cria uma novidade. Logo surge um vírus, um trojan, o diabo, fazendo com que o mundo consuma mais dinheiro na pesquisa e fabricação de “antídotos” para cada nova cepa de pandemia digital. E, claro, na ponta é sempre o consumidor quem paga o pato e a fatura.

Golpes de toda monta surgem como fossem a “geração espontânea” imaginada por Darwin: brotam em árvores para assaltar o “cidadão de bem”, termo já bem desgastado pelos radicais de hoje. E quando se pensa que tudo está sob controle, surge uma nova invenção (como diria o Nélson Rodrigues, para seduzir a “massa ignara” – leia-se: todos nós). Veja o WhatsApp: um aplicativo multiplataforma para celular que se transformou em fonte de golpes e ferramenta de extorsão. Amigo ou parente que teria mudado de número escreve para pedir dinheiro ao incauto cidadão – “é só pra cobrir uma despesa e amanhã devolvo”… Só que, no caso, amanhã não vai ser outro dia, esse amanhã nunca virá.

E há o novo golpe (Folha, 28/08), com o logo do Ministério da Saúde, sobre a terceira dose da vacina: o sujeito recebe mensagem dizendo que foi sorteado para a inoculação extra, bastando apenas clicar no link da fabricante desejada. Mas…Todos os caminhos levam a Roma, e todos os links devassam teus dados ao hacker.

Vem o Banco Central e lança mais uma invencionice eletrônica, panaceia para todos os males financeiros que aparentemente veio para privilegiar os mais pobres – os que possuem celular, bem entendido. Talvez para fazê-los sentir o charme das classes mais altas, que passa TEDs, DOCs e afins: o PIX (de “pictures”, ou ainda “pixels”, em inglês).

A nova “pedra filosofal” parece transformar latão em ouro fazendo do pacato cidadão um pagador à vista, que seja de três vinténs, como na peça de Brecht e Weill (1928) adaptada da “Ópera dos Mendigos”, de John Gay. Orgulhoso, ele saca seu celular e paga, toca a pagar, é tão fácil, não? O negociante, ou credor, agradece penhoradamente.  É a maravilha, salvo-conduto para a Pasárgada de Manuel Bandeira – “tem um processo seguro / de impedir a concepção / Tem telefone automático / tem alcaloide à vontade…”

No dia 26 de agosto, o Estadão publicou matéria que escancarava o título “Roubo com PIX dispara em SP; sequestros-relâmpagos crescem 39%”. E descreve uma cena dramática: André Chaves e sua noiva param em um sinal vermelho no centro de São Paulo, em um segundo o vidro da passageira é estilhaçado, um gaiato rouba um celular e foge por entre os veículos. Resultado: em meia hora Chaves havia perdido R$ 5.800, transferidos via PIX. Pior ainda são os que envolvem o sequestro do dono do celular que, sob o cano de um 38 ou uma .40, transfere tudo o que tem para a conta que o bandido mandar. Na garupa do roubo, vem ainda o perigo de estupros, agressões e assassinatos. A depender da fragilidade da vítima, basta uma faca de cozinha para consumar o crime.

No dia seguinte, 27 de agosto, novamente segundo o Estadão, a Polícia fez soar o alarme da escalada vertiginosa dos sequestros-relâmpagos, 39%, e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, anunciou mudanças para prover de melhor segurança as operações com o PIX, falando em limitar horários. Neto do ultraortodoxo economista Roberto Campos, ministro do governo militar de Castello Branco, chamado “americanista”– de onde o apelido “Bob Fields” -, o atual presidente do BC não prima pela argúcia do avô, personagem de nossa triste história: a maior vantagem do PIX, para os bandidos e sequestradores, é exatamente poder levantar sua féria em plena luz do dia, sem que ninguém – ou quase – perceba, fazendo a operação tão rapidamente quanto um mago prestidigitador ou com a vítima sob sua mira. Após as 20h, só se poderá “pixar” (e vamos neologizando) até R$ 1.000. Não sabe o ilustre presidente do BC, nascido em berço de ouro, que R$ 1.000 é muito dinheiro tanto para a vítima pobre quanto para o bandido! Portanto, às favas com os horários. E esqueçam os sensores biométricos, que reagirão sob os dedos das vítimas conforme a dança e logo que lhes for exibido o cano de uma arma ou o brilho de um punhal.

Particularmente, torço o nariz para bancos e nuvens virtuais, prefiro o convencional, sem pequenas operações via PIX ou investimentos em criptomoedas. Sem lenço nem documento, lembro Caetano, eu vou.  Ouço sobre muitos outros problemas relacionados ao novo sistema de transferência do BC, como aquele digitozinho a mais que escorrega na digitação e não tem volta; o pagador depende da boa-fé de quem recebeu por engano ou lá se vai seu pouco mas rico dinheirinho. Pior de tudo, o PIX é um atrativo também para engambelar sob coação as presas mais fáceis, já que qualquer um pode tê-lo: adolescentes, moças e idosos, deixando-os vulneráveis a ainda outros malfeitos.

Com a economia em frangalhos, os preços nos píncaros, o desemprego chegando a 15%, a Selic prometendo virar o ano a 8%, o comércio estagnando e a comida escassa em incontáveis residências, seriam esses novos “gadgets” eletrônicos uma nova espécie de “ópio do povo”, mais um factoide a dourar a pílula, já tão amarga, da sobrevivência neste país?