“Pra mim / basta um dia / não mais que um dia (…) / Só um / belo dia / pois se jura, se esconjura, se ama e tortura / se tritura, se atura e se cura a dor / na orgia / da luz do dia / é só / o que eu queria / um dia pra aplacar / minha agonia”. Lembro-me das mais de centenas de vezes que ouvi a linda interpretação da Bibi Ferreira para esta obra do Chico, na peça “Gota D’Água” (fui músico da estreia em temporada carioca). A dor de Bibi/Joana/Medeia era por Jasão tê-la abandonado com os dois filhos para unir-se a Alma, filha do poderoso Creonte, o rei do pedaço, ambientando a tragédia de Eurípides (480-406 a.C.) em alguma favela de um morro do Rio. Após muitas ideias enlouquecidas, atormentada e alimentada apenas por uma dor imensa, Joana/Medeia resolve matar os dois filhos e suicidar-se, vingança contra o traidor Jasão. A dor imensa chegaria ao fim com a consumação do gesto.
Belchior, ainda jovem, foi do seu Ceará natal para o Rio, tentando a vida com o violão. Um dia compôs uma das obras mais populares de Elis Regina, “Como Nossos Pais” (1976): ”Por isso cuidado, meu bem / há perigo na esquina / eles venceram / e o sinal está fechado para nós / que somos jovens / (…) Minha dor é perceber / que apesar de termos feito / tudo o que fizemos / ainda somos os mesmos e vivemos / como nossos pais”. A dor de Belchior era aceitar que “eles” nos derrotaram, que (ainda) vivíamos como antes, entre perigo e medo. E que, embora tenhamos feito de tudo, ainda permanecemos os mesmos e nada mudamos. Era a dor do inconformista, do jovem que, como milhões de outros, queria transformar o país e o mundo em um lugar melhor, e por tudo isso sentiu-se derrotado. Ele alerta para o perigo nas esquinas, mas ao final se conforma: “eles venceram”. A censura do regime militar foi condescendente com as muito sutis cores da poesia desta música, mas em troca foi implacável tesourando aqui e ali trechos de diversas outras faixas do disco, a título de infantil compensação.
O amor, sentimento maior e casto na essência, leva a sentir de outra forma uma dor diferente, tão profunda que pode levar a matar ou morrer (haja vista a Medeia e os assassinos dos telejornais diários!). Já a rica poesia de Paul Simon e Art Garfunkel assim resumiu o papel do poeta vendo o sofrimento da amada, em “Bridge over Troubled Water”: “E quando a dor estiver por todo canto, / como uma ponte sobre águas revoltas / eu vou me deitar”. É o gesto que lembra o clássico “estender o paletó” sobre a poça para a mulher cortejada passar, só que agora transposto para um ângulo mais amplo, cinematográfico e mais abrangente do poético afago, que é oferecido à guisa de suporte para a amada nas horas de dor. Uma ponte que vai se estender para que ela atravesse o rio de águas furiosas, perigo que volta e meia aparece no caminho da vida. A dor da paixão faz de tudo contra a tristeza da amada nos momentos mais depressivos.
Mas o que seria a dor de que tanto falamos, e que volta e meia sentimos? O poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867), em seu “Alquimia da Dor”, diz: “Um te ilumina com seu ardor / o outro encontra em ti teu luto, natureza! / aquele que diz a um ‘sepultura!’ / diz a outro ‘vida e esplendor’” (T. do A.). Mas que sentimento é esse, tão volúvel, tão confuso? Para uns a morbidez, aos outros um paraíso? E por que uns a sentem, outros não? Chico mostra a resiliência da mulher que sofre a qualquer tentativa de salvá-la: “Carolina / nos teus olhos fundos / guarda tanta dor / a dor de todo esse mundo / (…) Eu bem que mostrei sorrindo / pela janela, ó que lindo / mas Carolina não viu”. (Carolina, graças à Globo, foi composta às pressas como moeda de troca pelo rompimento por parte do Chico do contrato de um programa especial assinado com a emissora, que exigiu em contrapartida uma música para o II Festival Internacional da Canção. Do acerto surgiu esta pérola, uma das mais lindas do bardo carioca.
A dor imposta pela traição a Joana/Medeia, a dor de Belchior ao ver que perdemos a luta, a dor apaixonada do homem que se deita como uma ponte para a travessia de sua amada nos momentos difíceis, a dor ambígua em Baudelaire, a dor física do enfermo ou do acidentado – afinal, o que é essa dor de que todos falam? Que sentimento é esse, tão inexplicável? Houaiss tenta organizá-lo em acepções, tais como “sensação desagradável”, “mágoa por desgostos”, “compaixão”, “sofrimento físico ou moral”… Mas dá para explicar o significado da palavra a quem hipoteticamente nunca tenha sofrido? Primeiro, definir ódio, amor, medo ou dor é missão sem norte e sem fim. Depois, é melhor viver a dor, por um segundo que seja, do que tornar esses sentimentos objetos de estudos, definições e axiomas, na busca vã de explicar o inexplicável.
Qual o sentido da dor eterna, que pode levar à morte, como em “Gota D’Água/Medeia”? Da dor que mereceu do amado uma ponte? Da dor que poderia sucumbir à beleza, mas Carolina não quis ver… A dor pode durar um átimo ou uma vida inteira, ser sentida por um bebê na vacinação e por outro apenas estranhada, ou por uns mais e outros menos ao encarar a morte de um ente querido. Fale-me de suportar a dor, fazendo-a em silêncio durante uma sessão de tortura, como sofreram muitos, ou algo tão etéreo quanto descreveu Fernando Pessoa em “Vaga, no Azul Amplo Solta”: “Na minha amarga ansiedade / mais alto do que a nuvem mora / está para além da saudade / (…) Não sei o que é nem consinto / à alma que o saiba bem / visto da dor com que minto / dor que a minha alma tem”.