A carta

Henrique Autran Dourado

Cartas, além de declarações de ódio ou amor, são eficientes para gravar palavras a ferro e fogo. Diz o provérbio latino: “Verba volant, scripta manent” (“palavras voam, escrita permanece”). São muito mais que um e-mail, WhatsApp ou Telegram, cada vez mais taquigráficos com os cacoetes de hoje.

Cartas não morrem, se as guardarmos com zelo. As de nossos avós amarelaram com a tintura do tempo, cor de fundo para letras desenhadas, da caligrafia à assinatura final.

Romântica é a dor de quem espera por uma carta, como em “Hey, Mr. Postman” (“Ei, Sr. Carteiro”), dos Beatles: ”Deve haver algum bilhete hoje / da minha garota, tão distante / por favor, Sr. Carteiro, olhe e veja / se há uma carta, uma carta para mim” (para enamorados, esperar é angústia pura), como em “Ninguém Escreve ao Coronel”, de García Márquez, sobre a vã espera de um militar reformado pela carta de pagamento da pensão, entre crises asmáticas da esposa e um galo de briga com que levantava uns trocos nas rinhas.

Frédérik Chopin (1810-1847), compositor polonês – autor de mazurcas, noturnos, polonaises e dois concertos para piano – nutria paixão por Aurore Dupin, escritora conhecida como George Sand na velha boemia da Paris que se vestia com terno e chapéu, e fumava charutos como homem. Para Chopin, parecia-lhe um rapaz, e Liszt uma viril amazona. O relacionamento entre Chopin e Sand teve muitos bilhetes e cartas (as que Sand recebia de Chopin eram sumariamente rasgadas). Se desconhecia o destino de suas missivas, tanto faz, importava tê-las escrito – vítima da sofreguidão, de um amor platônico que se convertia em sons no coração, e dele para suas obras, hoje repertório de dez entre dez pianistas.

Wolfgang Amadeus Mozart, “O predileto dos deuses”, viajava muito pelas cidades da Europa. Desesperadamente apaixonado por sua amada Constanze, tinha um jeito excêntrico de escrever-lhe cartas: “beijo-te 1.095.473.082 vezes”. Tratava sua cara-metade de forma absolutamente infantil, e se despedia: “do teu ‘stu! Knaller-paller. Schnip-schnap-schnur. Schneppeperl-snail’” – que não quer dizer nada, mas o som lhe agradava como um segredinho entre jovens namorados.

Cartas, no passado, serviam como declaração de herança e tinham efeito legal, como o “Testamento de Heilingenstadt”, de Beethoven, pródigo em alterações ao “calor do momento”, ao sabor de seus desentendimentos familiares; deixou bens e dinheiro como herança, e inseriu em seu inventário a confissão da loucura por que estava passando, incompreendida pelos médicos: além da surdez, uma cruel depressão e a perda do juízo.

Distrito de Whitechapel, Londres, 1888. Jack, o Estripador (“The Ripper”), nunca identificado, enviou carta à imprensa declarando-se o assassino serial, mas, assim como seu nome pode ter sido um blefe, o texto apenas um jogo para disseminar o pânico em Londres. Alcunhado “avental de couro”, alusão aos açougueiros tal a crueldade empregada em suas vítimas, todas mulheres, costumava buscar prostitutas do East End londrino para dilacerá-las ao seu “estilo”: garganta cortada e abdômen retalhado. Ao oficial de polícia de Whitechapel enviou outra carta, de que “traduzo” um trecho, tentando preservar a condição de semialfabetizado do criminoso: “Do inferno. Mr. Lusk., Sinho eu lhe mando metade do rin priservado eu tirei de uma mulher a outra parte fritei e comi. Estava muito bon. Posso mandar a fac ensanguentada que tirei se o Sr. eperar um pouco. Assinado: pegue-me quando puder, Mishter Lusk” (deixando escapar um possível sotaque escocês).

Getúlio Vargas, em 23/08/54, iniciou sua carta-testamento apontando “as forças e os interesses contra o povo”, e encerrou-a com pompa e circunstância: “dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história”. Matou-se com um tiro.

Sete de setembro, dia dos desfiles, da saudação à independência do Brasil. Concentrações de militantes, fanáticos e agregados em diversas cidades do país extrapolaram os limites. Não com ataques físicos, mas com a ocupação da Esplanada, em Brasília, e faixas contra a ordem e o STF. Discursos do presidente da República repetiam o que foi considerado grave ameaça ao Estado de Direito, pano de fundo para ofensas diretas a ministros do STF. Claro, houve reações negativas tanto por parte dos ofendidos quanto na imprensa; pior ainda, vindas até de indivíduos que convocaram militantes para a manifestação. O presidente chegara à encruzilhada, seria preciso galgá-la para sobreviver sem um tropeço fatal.

Para tal, chamou Michel Temer, ex-promotor, ex-presidente e homem forte no MDB, que lhe propôs uma breve “Declaração à nação”. Temer leu a minuta ao telefone, e sua ida pessoal a Brasília foi condicionada à aceitação da carta pelo presidente. Pois foi, e com verve forense, usou a figura do “calor do momento” como justificativa possível para os excessos presidenciais. Ato contínuo, daqui e dali buscou-se apagar o incêndio, mas o recuo não agradou aos militantes. As palavras se foram (“verba volant…”), mas a imprensa, os vídeos não. Temer pensou que talvez bastasse um aceno, ceder discreta e elegantemente, mas a militância aguerrida estava incendiada.

O ex-ministro tatuiano do STF, Celso de Mello (UOL, 11/09), lembrou a carta de Hitler para o acordo de paz de Munique na 2ª Guerra, em 1938, rompido quando os alemães invadiram Praga no ano seguinte. O recuo do Führer, disse o ex-decano, fora uma farsa.

(A escrita também “voa”, só os fatos permanecem).