A bênção, Shalom, Baraka, Saravá, Evoé!

Fratelli Tutti, Papa Francisco!

Henrique Autran Dourado

Das músicas memoráveis compostas por Baden Powell e Vinicius de Moraes, o “poetinha”, diplomata e compositor, “Samba da Bênção” (1962) é uma espécie de oração parte versos, parte falada, com direito a improviso. A letra começa com um elogio à alegria e uma espécie de receita para fazer um bom samba: “É melhor ser alegre que ser triste / Alegria é a melhor coisa que existe / É assim como a luz no coração (…) / Mas pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza / (…) Senão, não se faz um samba, não”. O poeta carioca de educação católica, abraçando a Umbanda, distribui graciosamente as bênçãos à mistura fina brasileira: “Porque o samba nasceu lá na Bahia / E se hoje ele é branco na poesia / (…) Ele é negro demais no coração”. [Trecho deste poema foi citado pelo Papa Francisco no cap. 26:215 da encíclica “Fratelli Tutti” (“Todos irmãos”): “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”.]

Vinicius proseia, não sem antes apresentar-se como “o branco mais preto do Brasil, na linha direta de Xangô, Saravá!” (Xangô é um orixá ioruba, deus da justiça e da sabedoria). Segue pedindo a bênção a Pixinguinha, Cartola, Nelson Cavaquinho, Cyro Monteiro, Noel Rosa e Tom Jobim, encompridando aqui e ali a fala para tecer suas loas, como mereceram Pixinguinha, “tu que choraste na flauta todas as lágrimas de amor”, Jobim, a quem chama maestro, “parceiro e amigo querido, que já viajaste tantas canções comigo e ainda há tantas por viajar”, e Carlos Lyra, “parceiro cem por cento, você que une a ação ao sentimento e ao pensamento”. Com Baden-Powell Vinicius compôs também “Canto de Ossanha”, o orixá das ervas medicinais, no sincretismo católico representado por São Benedito (entre os escravos, nas senzalas, as entidades das religiões de origem africana eram simbolizadas por santos católicos, encobrindo as crenças das vistas dos senhorios das casas-grandes). Também da dupla Baden-Vinicius é o “Canto de Iemanjá”, orixá das águas e filha de Olokun, senhor dos mares, no sincretismo Nossa Senhora.

Escolhi o samba de Vinicius e Powell para desejar boas festas especialmente pela encíclica “Tutti fratelli” do Papa Francisco, coração aberto aos que adotam religiões afro-brasileiras; os judeus, católicos, islamitas, evangélicos e mesmo os ateus e agnósticos, pois todos, mesmo aqueles que o negam, queiram ou não queiram e saibam ou não, também são filhos de Deus. [Lembro-me do triste episódio acontecido há um ano na UFRJ (Universidade Federal do Rio), quando vários alunos de música se recusaram a cantar “Toadas de Xangô”, do maestro petropolitano Guerra-Peixe, aliás também autor do hino católico do Colégio Nossa Senhora de Fátima.]

Uma nova censura tem adentrado debates e travado embates em todo o país, assim como aconteceu na UFRJ. Uma lástima, especialmente quando a laicidade do Estado se encontra abalada e ameaçada, e essa reação à liberdade de criação, censura hoje incubada até pelas vias oficiais, não pode ser bem-vinda contra uma obra de arte no coro de uma escola do porte da ENM/UFRJ!

A bênção, Papa Francisco, o homem da palavra neste mundo, com seu manto mais de humildade do que a pompa da veste de um sumo pontífice: pregando a fraternidade, Amém! A bênção, Joe Biden, que trilhou o caminho dos justos e tenta, apesar dos erros, livrar dos males recentes maiores nossos irmãos da nação mais poderosa: o negacionismo, o ódio, o racismo e o extremismo. A bênção, rabino Ruben Sternschein, por pregar a paz ao nosso povo judeu, Shalom! A bênção, xeques Rodrigo Jalloul e Mohamad Al Bukai, críticos de qualquer forma de violência como defesa do islamismo, Baraka!

A bênção, todos os mais de 615 mil mortos pela Covid-19 e suas famílias; aos que nas ditaduras sofreram e morreram por um ideal chamado criminosamente de “delito de opinião”; a bênção todos os verdadeiros evangélicos, os que professam as palavras dos livros sagrados por fé e não enganando ou sendo enganados por ganância política ou financeira de alguns, escudados em alguma Igreja de fantasia. Amém! A bênção, Mãe Menininha de Gantois, por cujo terreiro na Bahia passaram, além de Vinicius, Caetano, Gil, Bethânia, Gal, Caymmi, Jorge Amado, enfim, a fina flor da cultura brasileira: Saravá!

A bênção, Emanuel, judeu palestino que há mais de 2.000 anos foi perseguido e crucificado por buscar a paz e a igualdade para nos salvar: Feliz Natal, Joyeux Noël, Merry Christmas, Feliz Navidad, frohe Weihnachten – todos os idiomas do mundo serão poucos -, porque somos um só, todos irmãos, e um dia, independentemente de credo, matiz ideológico ou cor da pele, alcançaremos a paz na plenitude, livres dos bandidos sem e com colarinho, dos tiranos e dos inimigos do povo, Amém!

A bênção, Vinicius, todos os músicos, bardos e menestréis, por tornarem a sofreguidão da vida humana mais suave e fazerem se abraçar os amantes (como diziam Lamartine e João de Barro, em “Cantores de Rádio” (1936), “de noite embalamos teu sono / de manhã nós vamos te acordar”); a bênção, poetas e os que escrevem prosas das mais belas, romances e contos, ou registram com honestidade o dia a dia e a história do país e do mundo, sem corromper ou censurar a verdade; a bênção, pintores, escultores e artistas de palco: dançarinos, atrizes e atores (e os que viajam em circos e mambembes, ou pelas esquinas das ruas com seus malabares); os cantadores e cururueiros, Evoé! Aos que me leem, Feliz Natal e Ano-Novo. “Siamo tutti fratelli”!