Henrique Autran Dourado
A vida não escolhe dia e hora para nos pregar peças. Sequer as mais dolorosas, como levar pessoas que amamos e admiramos, sejam familiares e amigos ou ótimos e estimados colegas profissionais. Este ano o destino nos tem sido especialmente cruel, precisa parar por aí. Chega de arcar com o peso que nos traz a falta, por mais contraditório que isso pareça. (Sentimentos não conhecem leis da gravidade, pairam acima delas; a ausência sim, pesa como um fardo às costas).
O que flutua é a memória que nos abraça e se espalha como um grande sopro, um “soffione” (em italiano, aquela flor-pompom que se pulveriza, multiplicando-se em micropartículas, voando à menor brisa ou ao mais puro assoprar de uma criança). Tal qual “A Felicidade” do Vinicius: “como a gota de orvalho / numa pétala de flor / Brilha tranquila / depois de leve oscila / e cai como uma lágrima de amor”.
No domingo retrasado, 20 de setembro passado, deixou este palco o grande flautista Jean-Noël Saghaard. Deixou-nos com a mesma simplicidade com que veio para o Brasil e logo tornou conhecido seu timbre puro e aveludado. Foi o melhor Bolero de Ravel que já ouvi, e olhem que não foram poucos. Captava o espírito etéreo daquele solo de abertura sobre o qual todo o resto se erguia e se encorpava, equilibrista como fosse mágica, até o repentino desmoronamento final. Grande músico, excelente professor, amigo sincero, tinha personalidade forte e a introspecção de que só os verdadeiros artistas dispõem. Foi-se como a gota de orvalho do Vinicius, e tão suavemente como quando seu instrumento mágico abria a obra de Ravel.
Em um dos vídeos que nesses dias tenho procurado para lembrar Jean-Noël, chamou a atenção a figura de Bruce Mack, violinista e amigo, também professor de Escola Municipal de Música de São Paulo com quem eu tinha certa afinidade, talvez por ele ter nascido na Boston onde vivi. Bruce foi-se de repente, o coração tão aberto aos seus alunos e amigos que não suportou um ataque traiçoeiro. Próximo a ele, em primeiro plano na cena, o “spalla” da Osesp, Aírton Pinto, exímio violinista, um bostoniano honorário que tocou por anos na famosa sinfônica, e cuja imensa capacidade não se imiscuía em amizades sinceras. Coincidentemente, foi em Boston, 2009, que eu recebi a notícia da partida de Aírton, exatamente onde ele havia feito seu segundo lar, pelo telefonema de um amigo que recebi no hotel. A notícia veio no mesmo dia em que eu havia ouvido falar o nome dele ao menos cinco vezes, em visita ao New England Conservatory e à Boston Symphony. Bruce e Aírton, lembranças do vídeo do Jean.
Há seis meses, em 26 de março deste 2020, saía de cena Naomi Munakata, que foi regente do Coro Sinfônico da Osesp. Nascida em Hiroshima, admirada professora e maestrina, foi vitimada pelo mal do século, a Covid-19. Vez por outra levava seus apetrechos para cozer sukiyaki em minha casa, e a certa altura meu já impaciente filho Lucas, então com três anos saía deitado para uma volta no banco de trás do Fusca de Naomi, espécie de simpatia que o trazia de volta dormindo (talvez já prenúncio da paixão que ele desenvolveu por automóveis, seu atual métier).
Em 31 de outubro de 2015, “caiu o pano” para Martha Herr, brasileiríssima soprano norte-americana, uma de nossas vozes mais lindas: das melhores Bachianas nº 5 do Villa-Lobos e o melhor Exsultate Jubilate de Mozart, emocionava até com o singelo “Over the Rainbow”, do filme “O Mágico de Oz”. Em 2003, desempenhou à perfeição o papel-título de “Olga”, ópera de Jorge Antunes e Gerson Valle – como ela, Martha resistiu o quanto pôde não ao nazismo, mas a outro mal que a assaltara.
No dia 4 de agosto de 2007, o violoncelista polonês Zygmunt Kubala, ao abrir um recital em uma igreja em Ouro Branco, Minas Gerais, mal terminou a primeira frase e caiu, vítima de ataque fulminante. Meu companheiro de algumas turnês e festivais, ele dizia que esperava morrer fazendo o que melhor sabia: tocar seu instrumento. E assim foi-se, inspiradíssimo, embalado pela sua introspecção sem par e som inimitável.
No meio musical temos sofrido diversas outras perdas nesses anos, desde Eleazar de Carvalho, maestro maior de cuja vida pessoal e musical desfrutei em vários momentos. Mestre dos mestres, nascera na cearense Iguatu em 1912 e tinha fama de durão (mas coração de geleia, digo eu). Pouco tempo antes daquele 12 de setembro de 1996, no leito que o embalaria no sono derradeiro, escreveu-me um cartãozinho com a caligrafia já mal ajambrada, mas ainda invejável, retorno carinhoso a um bilhete que eu tinha enviado desejando-lhe pronto restabelecimento – apesar de já quase impossível.
Espero que Jean-Noël tenha sido o último grande músico amigo a nos deixar sem mais, ao menos até o final deste fatídico ano de 2020, que ficará na memória como com ferro o gado é marcado. Mal se vão nove meses e 2020 já tem se mostrado implacável com as queimadas recordes no Pantanal (996% a mais desde 2018) e na Amazônia; as invasões de terras dos indígenas que aqui nos receberam há mais de meio milênio; a devastadora crise econômica e uma pandemia para cujo fim o povo, espelhando-se em algumas autoridades, não colabora como deveria. Empilham-se centenas de mortos por dia, enquanto é aguardada para já uma fada cientista com seu condão mágico cem por cento eficaz, que vacinará a totalidade do povo e de pronto nos devolverá o livre viver. Contudo, infelizmente, o ano não terminará fácil assim. A vida prossegue para os que têm a fortuna de tê-la.