Henrique Autran Dourado
Se me perguntassem um dia o que eu mais gostaria de ver em um regente coral, a resposta seria curta e simples de ser entendida: Samuel Kerr. Mas se esmiuçasse, como se estivesse em um coro: clareza, confiança, empatia, o gestual claro, o respirar junto; a experiência, que é fundamental, pois espera-se um chão firme onde se depositar segurança; energia, aquela que se transmite ao bem-reger, fazer a música acompanhá-lo para poder acompanhá-la. Como pessoa, a simpatia, o sorriso sempre que possível, aquela liderança que trafega em rua de duas mãos, pois que é um fluxo de ida e volta (tentar ser um líder no pódio sem que seus liderados retribuam é um tiro no pé). Enfim, aquela presença viva, o carisma daquele que sabe galvanizar as atenções e, sem ser arrogante, com energia envolver um ambiente, seja uma pequena sala ou um auditório de grande porte. Carga pesada, tudo isso! Esta é a primeira questão: o regente está preparado para tanto? Caso negativo, a música não deslancha, ela apenas passa na nossa frente.
Cruzava com Samuel Kerr no Teatro Municipal de São Paulo e na Escola Municipal de Música. Se não me engano, uma ou outra vez na orquestra, dividindo o palco com a Osesp do Eleazar de Carvalho (eram duas figuras diferentes, um de coro e outro de orquestra, temperamentos diversos trazendo a seu modo quase todas aquelas qualidades que listei no princípio). Samuel foi diretor da Escola Municipal de Música do Teatro Municipal nos anos 70, cargo que eu mesmo vim a ocupar 20 anos depois, já de volta ao Brasil e estabelecido em São Paulo. As mãos do Samuel lá estavam, no carinho com que ele tocou a EMM nos seus tempos de direção. Um ciclo que, após minha saída, veio a ser ocupado durante algum tempo por outra grande regente coral, a quem eu chamo até hoje “Magic Naomi”, que nos deixou no começo da pandemia, em 2020 – não coincidentemente, pessoa ligada a mim, e de forma mais estreita ao próprio Samuel. Certo dia, reencontramo-nos em Tatuí. Foi há poucos anos, fechando o círculo de cumplicidade e de sonhos comuns para a EMM e para a música.
Lembro-me de que foi no dia de meu aniversário, em maio de 2000, que Samuel tornou-se mestre pela Unesp – exigência da carreira, e não sua, frisava -, paralelamente ao cargo de professor daquela prestigiosa universidade, sua tese vindo a público com um trabalho de grande importância: “História da Atividade Musical na Igreja Presbiteriana Unida de São Paulo – Uma Fisionomia Possível”, abordagem detalhista de longa data da tradição musical presbiteriana em São Paulo. Passando os olhos pela tese, achei-a de tamanha relevância para a música da capital e a tradição presbiteriana que comentei, que deveria publicar o texto em forma de livro. Samuel ponderou e pediu-me sugestões, sendo que a primeira que me veio à cabeça foi minha editora de então, a Edicon, que ele fosse lá e conversasse com a responsável, ela estaria avisada. Fechou-se o acordo e, não tardou muito, logo estávamos com os exemplares nas mãos.
Um trecho do Boletim nº 1479 da Igreja Presbiteriana, de 13/11/1955, dedicava-se a um talentoso jovem músico: “Foi solenemente empossado o novo organista da Igreja, Samuel Kerr. Durante o culto recebeu a solene investidura de organista emérito o Prof. William Sunderland Cook, a quem foi entregue o respectivo diploma”. Samuel, que começara a estudar música um pouco tarde, aos 13, ao assumir o posto tinha então 20 anos, muita garra e especial vocação. Naquela Igreja, Samuel plantou as sementes de um estudo cada vez mais dedicado e profundo, lapidando-se e crescendo não apenas como organista, mas também como maestro de coro e professor amado por todos os que com ele quisessem aprender. Levava assim adiante uma tradição musical do passado, de grandes compositores e regentes de coro, organistas e cantores que se entregavam com dedicação especial à arte de louvar a Deus. A Igreja Presbiteriana Unida, no Brasil, existe há mais de 120 anos, e contando-se os primeiros esforços já conta com um total de 158 anos, desde os primórdios, na atual rua Líbero Badaró, e chegando à fusão como Igreja Presbiteriana Unida, no bairro de Santa Cecília, em 1900. Além de congregar seus fiéis, a IPU ajudou a produzir um sem-número de músicos para o país, e lá amadureceu nosso querido maestro.
O nome de Samuel Kerr é indissociável do Coral Paulistano, fundado em 1936 por Mário de Andrade e voltado principalmente ao repertório coral brasileiro. Assistir ao maestro conduzindo o Paulistano era abrir o coração para a nossa música, apresentações da mais alta qualidade não apenas no sentido universal, mas, também, à preservação do que temos de melhor – do folclore, do molejo e do gingado, passando pelas nossas composições mais elaboradas e chegando à música contemporânea.
Na quarta-feira, 17 de maio de 2023, baixava as mãos “al niente”, ao silêncio, pela última vez, o maestro frente ao seu imenso coro, que conduziria com espírito jovem e invulgar energia. Tinha então 88 anos completados 12 dias antes; aniversariava um dia depois de mim, razão de eu guardar a data. Sua partida rumo à grande pausa, não sei se repentina, foi notícia que me pegou despreparado, de supetão. Um susto. (Lembrei-me da foto dele que guardo, nós juntos à amiga regente do Coro da Osesp Naomi, em uma visita que fizeram a Tatuí). É chegada a hora de entoar para Samuel o famoso coro da ópera “Nabucco”, de Verdi: “Va pensiero, sull’ ali dorate”: “Vai pensamento, sobre asas douradas”.