Henrique Autran Dourado
De todos os tipos de munição, a bala confeccionada com prata – e às vezes ouro –, segundo rezam nossas lendas e folclore, é a única capaz de matar vampiros, lobisomens e outros seres aterrorizantes de todos os rincões brasileiros. A origem da lenda remonta ao século 18 na França: um monstro conhecido como “A Fera de Geauvaudan”, morta por um caçador conhecido como Jean Chastel (algo como João do Castelo), em cujo chapéu carregava medalhas de Nossa Senhora, que seriam derretidas no fogo e fundidas em balas de prata (embora tal folclore já seja bem antigo, mais atrás ainda, antes das armas de fogo, flechas de prata tinham o mesmo poder – não graças à prata em si, creio, mas ao poder da Virgem Maria, de cujas medalhas era extraído o precioso metal). Enfim, tais balas de prata tinham, nessas lendas, o poder de aniquilar feras, lobisomens, vampiros e o que viesse de coisa ruim pela frente. Era um estampido e só.
Entre nós, nos dias de hoje, a expressão “bala de prata” adquire um outro sentido, além do poder sobrenatural, o da bala única: não se deve errar o alvo, pois, caso aconteça, haverá um final terrível. Nos EUA, no filme western-espaguete “O Dólar Furado” (1965), Giuliano Gemma, caubói italiano no papel de um ex-capitão do Exército Confederado americano, recebe a missão de matar o bandido Black Jack. Em um duelo de bala única, Gemma, recebe um tiro no peito, cai e fica largado no chão. Depois – ele simulara estar morto – levanta-se: uma moeda de um dólar no bolso esquerdo da camisa o impedira de morrer – daí o título do filme. Talvez pouco tenha a ver com “A Fera de Geauvaudan” e “O Dólar Furado”, mas aqui no Brasil “bala de prata” permanece com o sentido de munição poderosa, e em geral uma só.
Claro, não compartilhamos literalmente desse folclore, mas há algum sentido quando se diz que o governo tem uma “bala de prata” no caso arcabouço fiscal, proposta gestada principalmente no gabinete de Haddad e nos aposentos palacianos de Lula e, com seus aliados. No caso da economia brasileira atual, fala-se muito em “bala de prata” quando se refere a âncora fiscal ou regra fiscal. Mas preferiram chamar o alvo de “arcabouço fiscal”, estrutura que sustenta a economia do país. Não simpatizo com a palavra arcabouço, de tantos sentidos, como esqueleto, armação, madeirame, e nem todos bons, talvez, para uma bala salvadora. (Eu diria a um analista freudiano que associo arcabouço imediatamente a calabouço, terrível cárcere subterrâneo, a masmorra, e o restaurante estudantil homônimo, o Calabouço, do Rio, onde, aos 18, foi assassinado Edson Luís, crime que provocou um movimento que foi um dos estopins para o AI-5). Arquitetura ou resto de ossos? Bom, qual seja. Optou-se por arcabouço, que vingou como estrutura preparada para o controle dos gastos públicos, projeto que ainda vai ao Congresso Nacional – agora sim, na forma de bala de prata, não sei se munição única mas com certeza aquela que faria sossegar a fera e daria ao novo governo a segurança de que precisa em uma sociedade tão dividida, um Congresso tão disforme. O fato é que, se perdida esta bala, cunhar outra a tempo de proporcionar a viabilidade de tanta mudança desde já será missão quase impossível. De armação, a estrutura poderá se transformar em esqueleto. Um arcabouço de ossos. Não seria a última bala, mas ficaria cada vez mais difícil. Resta saber se Haddad tem o dólar de ouro para colocar no bolso e aguentar o rojão.
Em 2017, o governo Michel Temer conseguiu aprovar a lei do teto de gastos, que amarrou as contas de despesas de cada ano às do ano anterior – ou seja, não seria possível gastar mais do que no ano passado. Tão simples quanto parece, mas eficiente? A proposta de Haddad tenta equilibrar metas de superavit (diferença para mais entre receita e despesa) e controle de gastos a partir da evolução das receitas. A lei de Temer é tida como impeditiva aos benefícios sociais propalados por Lula desde sempre, mas a proposta acordada até agora pelo governo e parte do Congresso não é compreendida a fundo por leigos – como eu. Em princípio, o aumento de gastos sobreviverá, mas tendo como referência o desempenho da receita, com piso de 0,6% e aumento, inflação à parte, de até 2,5%. Pronto? Claro que não. Os números e a terminologia me são familiares, mas os detalhes de que preciso para compreender esta imensa equação estão longe de minha vã economia, que vai mais para o lado filosófico do que do financeiro. Fico com Smith, Marx, Keynes e Galbraith, e dá para compreender alguma coisa com esse número de pensadores e suas filosofias. Afinal, Haddad não é formado em economia, teve apenas um mestrado na USP e nem foi FHC, ex-ministro da Fazenda de Itamar, sem formação específica no ramo.
Em vista disso, não vejo bala única ou de prata, como as nossas comentaristas dos telejornais da TV adoram dizer -, nem gosto de arcabouço. Não há apenas uma saída, um caminho, e é óbvio que todos eles são móveis, algo como uma escultura flutuante de Alexander Calder, peças oscilando como pêndulos no ar sem se chocarem, mantendo a harmonia como em tantos universos: a música, os corpos celestes, a cadência das ondas do mar. Os grandes economistas que conheci, os melhores, eram artistas, ou quase. Criam que cálculos e contabilidades caberiam melhor aos calculistas e contabilistas, e a eles próprios a estrutura e a filosofia. Porque tudo isso não é matéria de cálculo: é muito mais de pensamento, como a música que sai do papel para a fruição dos que a ouvem.