Henrique Autran Dourado
Maria da Graça Costa Penna Burgos, nascida em 1945 em Salvador, era uma linda baianinha arretada, dona de rara voz, soprano “de nascença”, à vontade nos agudos e com um timbre sensual e inconfundível. Reinou durante décadas em shows e gravações agradando gregos, troianos e romanos. A baianidade era expressa nos gestos, nos balangandãs, no sotaque manhoso, no corpo ora meio que lânguido, ora pleno de energia. Era o modo dela ser: “baiana é aquela / que entra no samba de qualquer maneira / que mexe e remexe, dá nó nas cadeiras / deixando a moçada com água na boca” (samba do mineiro Geraldo Pereira, profundo conhecedor do que é ser baiano). A falsa baiana não faz nada disso: “não canta, não samba / não sabe deixar a mocidade louca”. Mais: Gal, autêntica soteropolitana, foi gestada com inspiração lírica: durante a gravidez, a mãe dela, Mariah, ouvia música clássica. Daí talvez a potência de sua voz, sem aquele “diminuendo” nos agudos para não “rachar”. Bom exemplo é a gravação de “Brasil”, do Cazuza: não havia instrumental que a derrubasse.
Assisti a alguns shows da Gal quando eu morava no Rio. Como fazia bem para os olhos e ouvidos! Um desses espetáculos marcou-me de forma especial – e ela andava, rodopiava, exalava sensualidade e “frever” (de onde o frevo) nordestino circulando no pequeno palco do Teatro Opinião, no andar de baixo do Teatro Thereza Rachel em um prédio comercial de Copacabana (frevo, aliás, é “Festa do Interior”, de 1982, de Moraes Moreira e Abel Silva, que Gal cantava como ninguém, com aquelas “emboladas” troca-línguas com jeito de solos de saxofone). Se o Thereza Rachel era maior, no Opinião ela dava seus giros bem perto da plateia, que se derramava e se esbaldava. Sempre trazia bons músicos, mas a presença dela imperava. Simples, morava em um prédio no Vidigal, bem perto da favela, e se sentia confortável ali.
Mudando de cenário, estamos nos anos 1970, na praia de Ipanema, mais ou menos na altura da rua Farme de Amoedo. Ali, a Cedae mandou construir uma tubulação de diâmetro enorme para lançar os dejetos da região para bem longe da costa. O chamado “emissário submarino” foi construído nos anos 1970, e passou a despejar 6.000 litros de esgoto por segundo a quase quatro quilômetros da praia, sem ameaças à saúde da rapaziada – diziam.
Chegando à beira da praia, o “emissário” soerguia-se na forma de um enorme areal, ponto de encontro – ainda não se dizia “point” – da juventude negra e dourada. Circulavam por aquelas dunas Monique Evans, Chacal, Glauber, Evandro Mesquita, Regina Casé, Caetano, Fernando Gabeira… O Brasil se socializava por ali, era um lugar onde tudo se podia, desde que discretamente: dos topless aos cigarrinhos malcheirosos que faziam a letargia da tietagem. Ah, caipirinha de limão, cerveja, espetinhos de camarão, biscoitos Globo de polvilho e o “mate para viver” com torneirinha a tiracolo do coitado do vendedor, davam o tom do lugar. Segundo o cantor Jards Macalé, sobre o território livre inaugurado pela Gal, “eles sabiam, vigiavam aquilo, mas deixavam como válvula de escape” (“eles” eram as forças da repressão).
Lá pelas tantas surgia a “dona” do pedaço, adorada, reverenciada, merecedora de todas as torções de pescoço masculinas e femininas: Gal Costa, rainha de suas dunas, daí as “Dunas da Gal”. Tão comum essa referência ao lugar quanto ao Jardim Botânico e à Pedra do Arpoador, era uma obra feita para despejar o esgoto bem longe. No dia 9 de novembro de 2022, Gal deixou sua canga fictícia sobre dunas imaginárias, e foi molhar-se na água salgada para não mais voltar. Talvez tenha ido encontrar-se com sua Iemanjá, Orixá dos rios e lagos nas origens nigerianas, e entre nós rainha do mar. Água trouxe, água levou. Não fazem mais sentido aquelas dunas que foram uma bolha da intelectualidade carioca, da juventude sadia, dos cantores, instrumentistas, escritores, pintores, cartunistas, cineastas, artistas de cinema e TV, enfim, a “fauna” da intelligentsia. Lá, tudo se podia, ou assim se pensava, enquanto até de cima dos prédios agentes fiscalizavam de binóculos em riste – melhor vê-los aglomerados na praia do que organizando movimentos, deviam pensar os homens da ditadura.
Gal sabia dos lamentos, como em “rasgue a camisa e enxugue meu pranto” (“Pérola Negra”, de Luiz Melodia), de imaginar celestialmente, como em “while my eyes / go looking for flying saucers / in the sky” (“enquanto meus olhos / procuram por discos voadores / no céu”) – em “London, London”, de Caetano, a quem ela conheceu em 1963, uma amizade profunda e para sempre. Tinha aquela voz de timbre “divino, maravilhoso”, título de outro sucesso de Caetano que se tornou capa-título de um de seus discos. Uma voz feminina, Calíope, musa filha de Zeus, com toda a feminilidade, Gal era assumidamente bissexual. Não conseguia engravidar, e deixou entre suas paixões a atriz Lúcia Veríssimo e a cantora Marina Lima. Em 1998, casou-se com a empresária Wilma Petrillo. Aos 60, adotou uma criança, hoje com 17 anos, que não por acaso batizou com o nome do anjo da anunciação, Gabriel.
Gal também foi Maria da Graça, Gracinha, Gau – o nome com “l” não tinha a simpatia de Caetano, que havia sido preso, lembrava-lhe a abreviatura de general, mas teve de engoli-lo porque a estrela sabia ser tinhosa. Mãos dadas na “passeata dos cem mil”, mesmo com aquela aparente fragilidade era uma lutadora, como quando cantava “Divino, Maravilhoso”: “é preciso estar atento e forte / não temos tempo de temer a morte”. Gal não morreu.