Henrique Autran Dourado
Passada a ressaca da eleição, valem algumas considerações. Em primeiro lugar, venceu a Nação, pela tranquilidade com que o pleito se realizou, levando em conta as nossas dimensões continentais, polarizadas entre dois blocos, cindindo a população. O lado negativo fica por conta da ocupação de estradas não por motivos salariais e afins – que poderiam justificar uma greve dentro do que a lei permite, liberando parte da rodovia para não prejudicar os que precisam passar, como famílias e cargas especiais. Outro dado negativo foi a atuação ostensiva da PRF em estradas nacionais, principalmente do Nordeste, segundo se informou uma “operação padrão” para o controle das rodovias. Felizmente, nada mais aconteceu, e, segundo do presidente do TSE, Alexandre de Moraes, no cômputo geral os passageiros continuaram as viagens após as operações, podendo exercer o seu direito de votar.
Sobrepujando esses inconvenientes, a caminho das urnas com o objetivo de escolher os governantes dos estados ainda não eleitos e, principalmente, o dirigente máximo da Nação, aflorava o orgulho de sermos brasileiros. Com apenas uma ou duas escolhas no teclado eletrônico, sem os atrasos creditados à estreia do registro biométrico, a votação transcorreu sem maiores problemas. A população compareceu e saiu com a altivez cívica do dever cumprido, escolhendo um futuro com mudanças – afinal, não é este um dos pilares da democracia, a alternância? E quem sabe não será essa a ocasião para que, já no início da próxima gestão, possamos retornar via PEC ao mandato único de cinco anos, conforme fixado anteriormente pela CF de 1988? A Emenda Constitucional 16/97 transformou o segundo mandato, ou ao menos seu ano final, em campanha para reeleição: prejuízos ao Tesouro e à normalidade do país. A reeleição, suas virtudes, vícios e vicissitudes devem ser reavaliados, e isso já se evidencia de há muito. Trata-se de assunto para o nosso Legislativo – para isso elegemos nossos representantes -, cabendo à sociedade civil exercer o legítimo direito de pressão e cobrança.
Sim, “foi bonita a festa, pá”, lembrando o Chico, a Paulista com 700 mil pessoas (segundo o The Guardian), a Cinelândia outro tanto, mais capitais e muitas cidades pelo país. O presidente eleito, aos 77, com problemas de impostação vocal, terminou seu discurso após longas, e por várias vezes dispensáveis pela “longueur”, apresentações de apoiadores. (Lembrou o cantor Jorge Ben, em apresentação de “Charles, Anjo 45”, no IV FIC: “tô rouco, Charles, tô rouco!”). Surpreendente, também, a estamina popular, gente de todas as idades, para resistir horas de pé. Sim, “foi bonita a festa, pá”, mas desde agora há de se encarar o batente: É de bom-tom o presidente eleito visitar alguns dos principais líderes mundiais – e foram 88, até 1/11! – que lhe mandaram cumprimentos, como Joe Biden (EUA), Emmanuel Macron (França), Rishi Sunak (Reino Unido), Joseph Borrel (União Europeia), Pedro Sánchez (Espanha), Antônio Costa (Portugal), XI Jinping (China), países do Mercosul, América Latina e outros.
Nesse curto espaço de tempo, até a posse de fato do eleito, no primeiro dia do ano de 2023, há que se formar talvez não um consenso da base, mas ao menos uma direção na escolha de ministérios, constituição das pastas, organogramas, indicação dos chamados cargos de livre nomeação e exoneração, que esperamos de competência técnica antes de política. E saber preservar os melhores profissionais que porventura tenham ingressado na gestão anterior. Apaziguar, mais do que nunca, pois não faltam lutas insanas: há um conflito real na Ucrânia que mata inocentes e esfacela a economia mundial, criando uma inflação no Brasil temporariamente estancada a bíceps em alguns produtos, como a gasolina, e que acomete a maioria dos países, não raro como um turbilhão. É difícil o momento, sim, mas a festa acabou, pá, e é hora de começar a arrumar a casa com disposição e vigor.
Há que se dialogar, para que os que divergem possam ter espaço para exprimir democraticamente suas opiniões e posições; há que se contemporizar, remover barreiras e juntar os cacos que porventura possam ter resultado de embates necessários, quando civilizados, ou excedentes, se à margem dos contornos delimitados pelo Estado de Direito. Há que se pensar urgente nos que mal têm um prato de comida por dia, nos que “têm fome e sede de justiça, porque serão saciados”; nos que não têm onde se abrigar, nos que estendem a mão “pelo amor de Deus” para dar de comer aos seus filhos (o pelo amor de Deus da fé de cada um e mesmo dos incrédulos – voltando ao Chico, “e eu que não creio peço a Deus por minha gente, e é gente humilde, que vontade de chorar”).
Paz para o novo ano que se aproxima! Que os desejos mais profundos, libertos ou ainda represados nos corações e mentes sejam contemplados; que os homens caminhem para o destino que lhes foi traçado nas origens, que é o da fraternidade e do amor; que a vitória seja não mais do que o momento de uma disputa, e que junto a ela derrota perca o sentido de conflito – palavras cujos significados existirão de fato em nossa história. Que a paz e o direito à opinião sejam a imensa bandeira de todos, preservadas as divergências de onde emergem as soluções. Pensando agora em João Cabral, que seja uma imensa flâmula branca imaginária “se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação”.