Henrique Autran Dourado
Às vezes, rascunhando um texto, somos atropelados por alguma ideia. Daí nos lançamos a pesquisar outros problemas, e quem sabe ainda aprender alguma coisa mais de nosso idioma. Explico. Ao sentar-me para escrever, fui desviado do tema escolhido: minha filha Marta me liga de Londres e avisa que Thomas, meu netinho de oito anos, fraturou a clavícula. Pânico: assim de longe, tudo parece visto com lupa, a mente não tem limites. Conhecendo o NHS, sistema de saúde londrino, fiquei mais tranquilo, e esperei (o National Health System foi criado no pós-guerra para acesso irrestrito e gratuito de todos os cidadãos. Medicina privada existe, mas é para uns raros aquinhoados que, na emergência, correm para o NHS, claro).
Exame geral, chapa de raios X, laudo: fratura na clavícula. Nada grande, chororô, muita dor, um “sling” de gaze e pronto. A médica disse que ele poderia tirar para dormir, houve quem dissesse que não. Eu, daqui, fiquei com o bom senso e a palavra dela – são pessoas que inspiram preparação e confiança – e a lógica: o “sling” é um suporte para retirar o peso do braço do ombro quando sentado ou de pé. Daqui mesmo, de Tatuí, comprei um “sling”, em uma grande loja de departamentos de Londres. Uma tipoia chique, que abriu caminho para uma nova lição: eu sabia de “slingshot”, conhecido aqui pela forma abrasileirada de “estilingue” – atiradeira, ou ainda bodoque. O termo remete a funda, uma faixa que, girada no ar, lança uma pedra, tal como fez Davi para derrubar Golias.
Em menos de 24h, o “sling” que comprei chegou na residência da minha filha, para conforto do moleque. Confortável, leve, ajustável, fácil de colocar e tirar. Segunda lição: de onde tipoia, se em inglês é “sling”? Dicionário. Claro, tipoia só podia vir do tupi, “ti’poya”, “barraca feita de folhagem”, dada a semelhança com a cobertura de uma oca. A palavra gerou outras, tão rica que é nossa língua portuguesa brasileira, acepções como “espécie de rede com que as indígenas mantinham os filhos às costas ou escanchados nos quadris”. Notável! Refere-se a apoios de tamanhos diversos, e eis enfim o “nosso” significado: “tira de pano que se amarra ao pescoço para apoiar braço enfermo”. Quanta riqueza, quanta história aprendemos com os indígenas brasileiros de todas as etnias, quanto vocabulário! Se pesquisarmos a fundo, há uma vastidão de palavras e costumes que enriquecem nossa cultura e a dos que estavam aqui antes de nós (só temos a agradecer e pedir desculpa, “mea culpa”, pelo descaso ou violência de alguns).
Volto ao Brasil de 12 anos atrás, quando meu filho Pedro, hoje engenheiro, era um meninão uns quatro anos mais velho do que meu neto hoje. Também jogando futebol, em São Paulo, caiu, machucou-se, foi levado a um hospital particular distante, na Zona Sul, e… Clavícula fraturada. A médica que o atendeu disse que teria de operar, e passou a descrever com detalhes como seriam as cirurgias (sim, duas, uma para fazer o serviço e outra para desfazer) – isso, na frente do menino, já pálido! Corri daqui para São Paulo e levei-o a uma clínica especializada na vila Clementino. Não, nada de cirurgia, não é o caso, só tipoia, disse o médico. Trouxe-o a Tatuí, onde ele morava comigo, e mais uma consulta, com um ótimo ortopedista da cidade (e há vários!): tipoia. Nossos médicos falam a língua dos tupis-guaranis, quem diria. Assim, livrei-me do procedimento invasivo da médica de São Paulo, além das implicações que poderiam advir para o garoto, inclusive psicológicas, uma vez que ele já teria passado por uma torturante cirurgia imaginária ao assistir à descrição pormenorizada do procedimento. Mas não. Com a tipoia, algum tempo depois tudo isso era assunto esquecido.
Fora a parte léxica, houve a visão médico-hospitalar de dois países com sistemas públicos diferentes, gratuitos e para todos (a rede privada inglesa é para a mais casta elite, apenas). O NHS do Reino Unido – que na verdade são três – NHS England, Scotland e Wales – foi criado em 1948, três anos após o fim da Segunda Guerra, e é 100% custeado com dinheiro público. No Brasil, 40 anos depois, a Carta de 88, chamada “Constituição Cidadã”, criou o Sistema Único de Saúde, à imagem e semelhança do NHS. O sistema inglês consome 45% dos gastos em bens e serviços de saúde (fonte: ONS, 2001 Census). As despesas governamentais chegam a R$ 14,5 bi (câmbio de 7/10). Quanto a nós, o site Transparência Brasil do mesmo ano (2001) pede desculpas mas… está “fora do ar”. Diz o federacaors.org.br, o Ministério da Saúde, principal mantenedor, o SUS recebeu um corte de 20% no orçamento de 2022.
Se o nosso sistema público ainda não chega àquele NHS dos bons tempos, é pura questão financeira: orçamento cortado, rendimentos baixos, falta de equipamentos e aparelhos de todos os tipos, instalações, medicamentos e insumos. Lá, os salários vão do básico, R$ 14.130, ao do especialista, R$ 24.290, pelo câmbio de 7/10 (fonte: The Complete Guide to NHS Doctors, in BMJ Careers, 22/08/22). Isso, fora extras, bônus e gratificações. Mesmo considerando o custo de vida inglês, a diferença é gritante.
Em decorrência dessa fratura na clavícula vim a descobrir que o “sling” inglês é apenas uma tipoia ajustável, de material sintético. A origem da palavra tipoia é riquíssima, e traz à lembrança o grande Mário de Andrade, com sua ironia modernista: “Você sabe o francês ‘singe’, mas não sabe o que é guariba? Pois é macaco, seu mano, que só sabe o que é da estranja”.