Henrique Autran Dourado
“Se todo mundo lesse Machado de Assis, menos viadutos cairiam e menos pacientes morreriam nas mesas de cirurgia”, disse meu pai em 1971, referindo-se à queda do viaduto Paulo de Frontin, no Rio de Janeiro, e às condições do atendimento médico de então no serviço público no país. O desabamento de 120 metros de construção que matou 48 pessoas deu-se tanto pelo despreparo de engenheiros “amigos” contratados sem licitação quanto porque faltava controle dos pregões e compras nos tempos da ditadura. Quanto às mortes nas mãos de cirurgiões, só posso tecer minhas conjecturas, mas ante a arquitetura cirúrgica da obra de Machado devo anuir com a frase do meu pai – ele que era como uma generosa esfinge a ser interpretada -, e trazê-la comigo até hoje.
Fez questão de matricular-me em um colégio jesuíta de grande reputação no Rio, apesar de ele mesmo ser ateu. Até financiou na planta um apartamento bem perto, para facilitar idas e vindas. O sistema de ensino era rigoroso, exaustivo, mas devo-lhe muito, muito além do que me apetece imaginar. Tive ainda um pouco de latim, e os professores de português, francês e inglês eram para lá de exigentes. Frequentemente, tínhamos de subir no tablado um a um, e, na frente de todos, recitar “Última flor do Lácio, inculta e bela”, algum trecho de Du Contrat Social ou o Gettysburg Address do Lincoln. E ler Montesquieu, Byron, Mark Twain, tudo no original. E Machado.
Certo início de semestre levei à mesa de almoço a lista de leituras para o período. Vi meu pai enrubescer, dilatar as narinas, limpar a boca com o guardanapo, levantar-se, bater a porta da rua e sair. Foi ao colégio, e de lá voltou. Tinha dito que filho dele não leria uma determinada obra, “aquilo”, e ponto final. Coisa muito mal escrita, para fazer dinheiro.
Num apartamento em que do escritório à sala e até as partes de cima dos armários embutidos e paredes dos corredores eram cheias de livros, de tanto convívio aquele tornou-se o meu ambiente, e eu gostava, tinha orgulho. Lembro-me de uma gravura de Cervantes, livro na mão, desenhos oníricos ao redor, em cujo frontispício se lia: “Embebedou-se tanto na leitura que passava as noites em claro”. Lembrava-me a figura paterna, que não raro cochilava, cabeça e livro tombados para baixo, o corpo esparramado sobre a cadeira de balanço de palhinha. Naqueles devaneios, figuras imaginárias, pelas mãos de Machado, Shakespeare, Flaubert e Joyce faziam-lhe diatribes e diabruras na imaginação, fermentando suas criações literárias. Mas o trabalho do pai era todo elaborado com método, método rigoroso, a construção de livros e personagens era uma elaboração de engenharia, história e cirurgia precisas – tudo a ver com a frase que reproduzi para abrir este artigo. Um trabalho de formiguinha, referiu-se a ele o crítico Humberto Werneck, autor de “O Desatino da Rapaziada”.
Hoje, o desatino é que a escrita no dia a dia escorrega pelos degraus da miserabilidade, especialmente porque a prática está basicamente restrita à Internet e às redes sociais. O errar nem humano mais é, parece que o querem santo; tem seu charme, e o próprio conceito de erro vai sendo abolido. Verbos conjugados sem o “r”, concordância, acentos, pontuação – e o gênero assexuado, ou hermafrodita, que permite expor menos conhecimento para errar menos, achando que é, como se dizia, “pour épater la bourgeoisie”, para chocar a burguesia. Porém, a burguesia não mais se abala, ela mesma aderiu em massa à péssima escrita e linguajar que chegam aos mais altos escalões da Nação – em boa parte, por causa de uma educação deficiente, e me refiro aos estudos colegiais, à cultura familiar com frequência sem exemplos a servirem de paradigma, e às redes sociais e seus dialetos.
É claro que tudo isso resulta em prováveis maus governantes e eleitores cada vez mais vulneráveis a essa chaga conhecida por ignorância, salvo quando há uma luz sobre um ou outro graças a alguma inteligência pessoal. Faltam boas escolas, bibliotecas, preparação de professores; salvam-se apenas os que buscam preparar-se “motu proprio”, espontaneamente. Já abordei aqui a experiência de Sobral, Ceará, onde um projeto-modelo levou 95% dos alunos à competência na leitura e interpretação de textos, 38% acima da média nacional! A preparação de professores tem quatro escopos principais: formação, avaliação, meritocracia e seleção. Sobral mostrou-se um exemplo a ser seguido, o estudo orbitando ao redor dos livros, sem proibir os alunos de usar recursos midiáticos e de informática.
Comparativamente à experiência de Sobral, com 212 mil habitantes, seguem-na a boa distância outros 13 municípios também do Ceará, dez de Minas e apenas sete dos 645 de São Paulo, população total de mais de 40 milhões. Não é à toa que de Sobral saem tantos primeiros lugares em competições e concursos de português e matemática no Brasil.
A leitura está no centro do ensino sobralense, junto com a compreensão e interpretação de textos; há cuidado especial com as exatas, como matemática, área em que a cidade também é modelar. Leitura e redação são primordiais não apenas para formar bons cidadãos: é por intermédio do raciocínio e da compreensão de textos que lógica e percepção encontram campo fértil para o desenvolvimento do indivíduo. Talvez fosse o caso de refletirmos sobre o que disse o comediante, ator e escritor norte-americano Groucho Marx: “Eu acho televisão muito educativa: toda vez que alguém liga o aparelho vou para o quarto ler um livro”.