Henrique Autran Dourado
Tempos de ditadura, certa marchinha de Miguel Gustavo atiçava o povo na Copa de 1970 – “Noventa milhões em ação / pra frente, Brasil / salve a Seleção”. Nelson Rodrigues dizia “a Seleção é a pátria de chuteiras”, o ufanismo era massificador e o governo excludente: “ame-o ou deixe-o”. Outra frase, que pelo estilo pode ser também do Nelson, atualizada pelo censo demográfico: “O Brasil tem 214 milhões de técnicos de futebol”. Claro, é na rua, no estádio ou na mesa do bar que todo brasileiro diz como fulano deveria ter batido aquele pênalti; olha, sicrano deixou entrar; não foi mão na bola, foi bola na mão (volta e meia gritaria e não raro safanões). Coisas do Brasil, como na Argentina, porém muito menos violentas do que os Hooligans ingleses (Hooligan seria o sobrenome de um irlandês violento, do gênero “João Valentão é brigão / pra dar bofetão” (Caymmi). Sejamos todos técnicos, há espaço para todos!
Quando o assunto é política não difere muito do futebol, haja vista a enorme dissensão polarizada nesta já buliçosa pré-campanha eleitoral. Comparando à Argentina, discute-se não como os barulhentos peronistas do partido Justicialista, com seus tambores e gritos, nem como os quase sempre comportados ingleses. Nos quatro cantos do Brasil, paralelamente às discussões – quer sobre futebol, quer sobre política -, é comum investir um troco nas certezas de cada um: vale apostar dinheiro, quem sabe uma rodada ou um engradado de cerveja em quem vai fazer o gol da vitória. Na política, quem será o presidente, o governador e, frequentemente, o prefeito – no interior, os cidadãos são mais simpáticos à política local, que os afeta diretamente.
Mas não é só no futebol e na política que tantos milhões de brasileiros militam em debates com a verve de especialistas, mesmo que com pouco tempo de bancos colegiais, bem mais nas escolas da vida. Ler jornal? Um grupo mais seleto, talvez, pois a TV é bastante mais deglutível. Assistindo a novelas, comenta-se – frequentemente durante um intervalo ou mesmo alguma cena – sobre as pernas da atriz tal, aqueloutro e seus olhos, com invariáveis elogios ou palpites críticos: “como ela está bem neste papel”, ou “ele não tem cara de vilão, não acha?”, avaliações que no fim das contas acabam flutuando no ambiente, familiar ou não, transformado em plateia. Sim, a tendência é assistir em grupo, pois o pulsar e a respiração de cada espectador têm o efeito de reverberar no clima da audiência.
E como não bastassem o futebol, a política e o fazer artístico, também se discute economia. Claro, sem a erudição de um PHD da Harvard, são aqueles economistas forjados na própria condição de vida, nas dificuldades do dia a dia, na inflação galopante, no crédito impossível, no estouro do cartão, no preço exorbitante da gasolina e do diesel, do tomate, da carne, tudo o que o sufoca. Afinal, as finanças, segundo Kenneth Galbraith, em seu didático “A Era da Incerteza”1, já andavam a passos largos quando um campesino trocava cabras por um boi, e daí até o surgimento da moeda – versátil e mais fácil de se levar (1 em livro, há versão em português, e na internet uma ótima série em vídeo).
Sobre a expertise de um cidadão acerca de determinado assunto, lembro-me de ter conhecido o respeitadíssimo comentarista de economia Joelmir Betting, falecido há dez anos, em um churrasco do maestro Eleazar de Carvalho em Interlagos, na capital de SP. Para puxar assunto, ironizei sobre ele ter chegado em um Dodge Dart, beberrão à época nada benquisto por conta do alto consumo e dos preços nas bombas. Brinquei, e logo com ele, um economista… Pegou a caneta e um guardanapo e foi fazendo as contas diante de mim, aluno embasbacado. “Vocês compram carro popular para economizar gasolina, eu compro um “gastão” e pago a metade. Daí vocês financiam e pagam em até cinco anos, eu quito à vista e parcelas só pago cada vez que encho o tanque. Na hora de vender o carro vocês perdem dinheiro, têm dificuldade em transferir o financiamento, eu não”. Agradeci a aula e nos fartamos no lauto almoço. Foi somente depois desse episódio que descobri: Joelmir nunca fora economista, era um jornalista formado em ciências sociais na turma da Ruth Cardoso!
Todas as noites, após os telejornais, gosto de assistir aos programas de opiniões e debates com empresários, médicos, filósofos, apresentadores de TV, professores, cientistas, sociólogos, enfim, pessoas de credibilidade com formações diversas, no melhor estilo da Academia de Platão, lá atrás na Grécia antiga, primórdio da universidade (~387 a.C.): discutem ou expõem suas opiniões sobre diversos assuntos. Enriquecedor, ainda mais quando eventual discordância traz à luz novos elementos, um lado elegantemente acedendo ao outro: um sim com a cabeça, um sorriso ou um piscar de olhos. A diversificação e mesmo o conflito dão rumo ao conhecimento e à raiz do verdadeiro saber. A apologia do nada é bandeira da ignorância.
Novos tempos. Com o advento das redes sociais, alguns internautas postam críticas genéricas, toscas e depreciativas à exposição de ideias e conhecimento – textos negativistas geralmente copiados de um terceiro e colados digitalmente. Sinal dos tempos, compartilham uma espécie de censura, novo estilo de mordaça, sabedoria do nada saber e da “raiva de quem sabe”; ingenuamente, pensam que “lacraram”, como diz a gíria, com a aquiescência dos mais ignorantes do que eles. Encerro parafraseando Nelson Rodrigues: “toda censura será castigada”.