MPB, rock, política e censura

Henrique Autran Dourado

A Música Popular Brasileira há muitas décadas tem sido veículo de manifestação de opinião na voz de seus artistas. Quem costuma ser ouvido por milhares sabe que seu papel na sociedade vai além do de “entertainer”: é formador de opinião, e o público espera que seus artistas favoritos compartilhem suas vidas em todos os aspectos: comportamento, vestiário, ginástica, expressão verbal e seu pensamento político. O público se inclina para o artista que mais se adequa aos seus gostos, e tende a se envolver no pensamento de seu modelo, o que tem acontecido desde os primórdios da nossa música popular.

A relação músico-política não é exclusividade brasileira, claro. Ela existe nos EUA, nos países da Europa, no Japão e muitos outros, além dos latino-americanos, especialmente o Chile e a Argentina, de longa tradição. Do primeiro, a badalada Violeta Parra, que no Brasil chegou a gravar sua “Volver a los 17” (Voltar aos 17 anos) com Chico Buarque, Caetano, Gal Costa, Milton Nascimento e Mercedes Sosa, egressa do folclore argentino. Grupo de protesto, por excelência, é o chileno Inti-Illimani – Inti: “sol” entre os indígenas quéchuas, e Illimani, “águia dourada”, entre os aimarás. Autores de “Canto de Resistencia” e “Hacia la Libertad”, do período 1975-1977, auge da ditadura de Augusto Pinochet, que deixou um rastro de sangue e tortura, a exemplo do campo de concentração improvisado no Estádio Nacional de Santiago, por onde passaram mais de 40 mil pessoas em condições sub-humanas, muitas sob tortura. Foram ao menos 400 assassinatos em massa, conforme divulgado em todo o mundo. “La Cancha Infame: a História da Prisão Política no Estádio Nacional do Chile”, do historiador Mauricio Brum, registra que mais de um terço dos 40 mil presos sequer tinham relação partidária, o que mostra que a repressão atuava como metralhadora giratória no país andino.

Não havia outro caminho para a manifestação do artista, senão por coerência com sua missão como pessoa pública, ao menos como boca aberta contra o regime. No Brasil, chegamos a ter oficiais de plantão para a MPB, ceifando com um certo prazer sádico a criação de artistas de diversas tendências. Talvez dos mais conhecidos da lista seja Chico Buarque, cujo histórico passa por coleções de alegorias, metáforas, eufemismos e figuras de linguagem diversas para escapar da tesoura. Exemplos dos vetos são muitos: “Apesar de Você”, “Cálice” (com Gil), “Milagre dos Peixes”, “Construção” e “Gota d’Água”. Adotou o pseudônimo Julinho da Adelaide, e chegou a ser bem-sucedido algumas poucas vezes, escapando do crivo do censor de plantão.

No festival de Woodstock (1969), tudo era livre. Mais de 400 mil pessoas puderam desfrutar da melhor música pop e rock da época, incluindo Joan Baez, cantora de protesto que emocionou a todos com sua homenagem a Joe Hill, escritor e compositor fuzilado em 1915 no estado de Utah. Houve momentos em que não faltaram palavras de ordem contra Ronald Reagan, então governador da Califórnia, que em 1981 se tornaria o 40º presidente da República dos EUA. O binômio que dominou os três dias foram paz e amor, mas para muitos foi generalizado como “sexo, drogas e rock’n’roll”. Ninguém queria mal algum, ao contrário da recente invasão do Capitólio, em Washington, DC, onde um bando de loucos ensandecidos ligados a movimentos do extremismo fascista americano tentou derrubar o resultado de uma eleição.

Há alguns dias, o Brasil ficou estarrecido quando o ministro Raul Araújo, do TSE, acatou pedido de liminar de um partido político a fim de proibir manifestações de qualquer tipo sobre candidatos à Presidência e afins – gesto censório digno de tempos já vividos no país. Estabeleceu ainda multa de R$ 50 mil para a organização do festival Lollapalooza, em caso de qualquer manifestação política. Na noite de 28/03, Araújo revogou a própria liminar e a multa a ser imposta em caso de desobediência. Monica Bergamo, da Folha, informou que na decisão o ministro responsabilizou o impetrante pela tentativa de censura. Esse vaivém mostrou como são obscuras as ações sobre certos temas: ao deferir a liminar, no despacho, o magistrado declarou que o fazia “com base na compreensão de que a organização do evento promovia propaganda política ostensiva estimulando os artistas” (a se manifestarem politicamente) – Conjur (Consultor Jurídico, 29/03). A organização seria apenada pelo suposto “estímulo”, e os artistas censurados em seu direito de manifestação.

Ainda segundo o Conjur, “na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.970/21, o Plenário decidiu que os dispositivos que vetam showmícios (apresentações voltadas à promoção de candidatos) são constitucionais, mas que esse veto não impede que artistas manifestem suas opiniões políticas em apresentações próprias”.

Profissionais expressam suas opiniões e às vezes até mesmo apoios e preferências político-eleitorais em inúmeros canais de TV, todos os dias. Contudo, segundo a ótica do impetrante e do ministro que acatou o pleito contra o festival, não o poderiam fazê-lo no seu papel de artistas, em público. Por quê? Por medo de que um sadio festival de rock e MPB se transformasse em um “remake” às avessas da invasão do Capitólio em 6/01/21?