Henrique Autran Dourado
Bach (1685-1750) estudou em Eisenach, tal como Lutero dois séculos antes. Ali, frequentou classes de alemão, latim, grego, prosódia e disciplinas musicais como harmonia e contraponto. Compôs 3 oratórios, 7 corais vocais-instrumentais, 2 longas Paixões, 5 motetes, 190 cantatas, salmos, 371 corais a 4 vozes e um sem-número de concertos para cravo, violino e muitas peças para órgão e teclado, entre tantas outras. Dominava o contraponto de Palestrina (1525-1594), de século e meio antes, fundamentando seus estudos seguintes. Foi gênio na harmonia, dominando-a e chegando a Stravinsky e o dodecafonismo de Schönberg.
As regras ele mesmo, volta e meia, transgredia, em submissão ao processo criativo, nada muito diferente do que disse Flaubert (1821-1880) – em tradução de meus pais, Maria Lúcia e Autran Dourado: “O escritor é livre, conforme as exigências de seu estilo, de aceitar ou rejeitar as prescrições gramáticas que regem a língua, e que as únicas leis às quais é preciso se submeter são as leis da harmonia”. Pois se Bach às vezes subvertia, o fazia com plena consciência, sem perder o prumo em toda a sua obra.
Se dermos um salto para Arnold Schönberg (1874-1951), “pai” da Segunda Escola de Viena e criador do sistema dodecafônico, encontraremos um sistema bem mais rígido do que ode Bach: séries de 12 sons não-repetidos e seus retrógrados (escritos de trás para a frente), inversões, pura matemática. Nos EUA, estudei as chamadas harmonias funcional e tradicional – curioso: esta, segundo o método tradicionalíssimo do “revolucionário” Schönberg, que foi “moderno” parte da primeira metade do século 20. (Tive o privilégio de ter estudadoa “harmonia tradicional”do mestre com um ex-aluno dele, Di Domenica; no Rio, outro contemporâneo de Schönberg, Hindemith, em seu método tradicional). Conheci o microtonalismo (divisões de sons que estariam entre as teclas pretas e brancas do piano), e o que foi “vanguarda” no século 20.Bem “moderno”, estudei Microtonalismo com Joe Maneri, ex-aluno de Alban Berg, por sua vez discípulo do mesmo Schönberg. Mas sempre pés na terra firme com Bach, desdea polifonia de Palestrina, do século 16.
No Brasil, o dodecafonismo surgiu, temporão,com o alemão Hans-Joachim Koellreutter (1905-2015), casado com uma judia, que aqui chegou fugindo da Gestapo em 1937, e depois de algumas viagens para cá retornou em 1975. A técnica dos “12 sons”de que falei antes, quando chegou já era obsoleta na Europa, mas seduziu muitos alunos de composição, a ponto de os nacionalistas, liderados pelo tieteense Camargo Guarnieri, armarem uma “cruzada” contra o movimento. (Como era sedutora aquela técnica de se criar com enorme facilidade, quase sem pensar,apesar do resultado sonoro invariavelmente ruim! As minhas composições dodecafônicas valeram como treino, nada mais, e as considero obras tão ruins que nem sei se ainda guardo alguma).
Koellreutter foi diretor do Conservatório de Tatuí por pouco tempo, não deu certo e como compositor seu“novo” já era velho. Guardo comigo um livro de harmonia funcional e outro, “A Estética do Paradoxal e do Imprevisível”, que faz incursões intelectuais sobre o aleatório – de “alea”, dado, em grego: sorte, acaso. Santoro, Edino Krieger e Guerra-Peixe, entre outros ex-alunos dele, não demoraram muito para reencontrar seu prumo musical fora da “modernidade” do alemão – com quem estive, aliás, algumas vezes.
Na música, assim como na literatura – vide a citação a Flaubert, que fiz no início deste artigo –e outras artes, a transgressão “moderna”serve para sacudir a poeira do que parece estático. Mas tudo são conceitos vagos, às vezes ficam só no discurso. A mesma harmonia funcional “pasteurizada” da Berklee, de Boston, onde também estudei, não diferia muito da de Koellreutter, exceto pela grafia dos acordes e análise muito bem organizadas. Os demais exercícios de “modernidade” tive no New England, onde obtive meu bacharelado, com o já citado Joe Maneri. Coisa acadêmica, como se fosse aula de história. No estudo, porém, nos socorríamos sempre em Bach,de tabela degustando o velho Palestrina, meio milênio atrás.
A literatura portuguesa consolidou-se com Camões, e a italiana com Dante, que praticamente fixaram as bases de seus idiomas. Meu pai, ainda garoto, escrevia seus contos, mas seguiu os conselhos de um escritor mineiro, Godofredo Rangel: deu uma meia-volta às origens, fixando-se na leitura dos grandes mestres, como Machado de Assis e Faulkner, fazendo da leitura a âncora onde lastrear seu trabalho.Aliás, o pai dizia que em arte,filosoficamente,não há progresso, que é quando se supera:houve “progresso” de Michelangelo e Paul Klee? Dizia que era grande o risco de, levado pelo “canto da sereia”, o artista reinventar a pólvora.
Além das escolas de música brasileiras e estrangeiras que já conhecia, em 2009 fui aos EUA, a convite do US Dept. of State,para o “International Leadership Visitors Program”.Estive com professores e diretores de 27 instituições de música americanas, fora as que eu já conhecia,e as afamadas Juilliard e Curtis,ou ainda onde também estudei, New England. O que ensinam até hoje, fora instrumentos? Harmonia, contraponto… Via métodos tradicionais de Hindemith e Schönberg – a mesma que Bach aprendeu, tradição que continuará a ser ensinada enquanto a música ocidental existir -aqui, nos EUA ou nos países da Europa. Posso concluir com Drummond: “E como ficou chato ser moderno / agora quero ser eterno”.