‘Caí­a a tarde feito um viaduto…’





Os ricos versos do Aldir Blanc para a música de João Bosco, do fim dos anos 1970, entraram para a história na voz inconfundível de Elis Regina, sendo um dos maiores sucessos da cantora. Trata-se da riquíssima “O Bêbado e a Equilibrista”, letra que conseguiu colocar em um mesmo caldeirão, tornando-as plenas de sentido, figuras de linguagem e símbolos diversos – ainda não havia terminado o ciclo mais duro da censura. A letra é um jogo inteligente de aparentes contrastes, coisas desconexas ou contradições que faziam grande sentido para o ouvinte da época.

“O bêbado trajando luto me lembrou Carlitos”, talvez pelo andar oscilante do personagem de Chaplin, “a dona do bordel” que pedia “a cada estrela um brilho de aluguel”, referência às facilidades das casas de meretrício. E o “mata-borrão do céu” cujas nuvens chupavam manchas? Mais, a citação codificada a fatos cruéis da época da perseguição aos artistas e intelectuais: “o irmão do Henfil” (cartunista de “O Pasquim”), era o “Betinho”, que depois de preso exilou-se no Chile, pois sociólogos militantes das Juventudes Católicas não eram exatamente bem-vindos, mas presos. Betinho escapou “num rabo de foguete, com tanta gente que partiu…”

E a letra diz “chora à nossa pátria-mãe gentil”, citação do Hino Nacional, “choram Marias e Clarices…” Mas quem foram essas? Maria era Thereza (e outras “Marias”), mulher do operário assassinado Manuel Fiel Filho, e o sobrenome de Clarice era Herzog, esposa do jornalista e ex-professor da USP Vladimir Herzog, morto por tortura nas dependências do DOI-Codi – crime já confessado e reconhecido – tentando mostrar o suicídio por enforcamento na cela. Mas, diz a letra, a esperança é equilibrista, e o show de todo artista tem de continuar.

Agora, poucos sabem que a “caía a tarde feito um viaduto” é referência a um dos maiores desastres do Rio, no pior dos anos Médici, em 1971. O viaduto Engenheiro Freyssinet, nome oficial que não pegou, ficou conhecido como Paulo de Frontin, popular avenida que passava por baixo, e ia ser prolongado. Simplesmente viu ruírem perto de 150 metros de uma só vez sobre a via, esmagando quase 30 pessoas e ferindo outras tantas.  

Mas por que caiu aquele trecho enorme de viaduto? Algum deslize de cálculo no concreto protendido, invenção francesa do homenageado Freyssinet? Superfaturamento por ausência de licitação? (A licitação é um Instituto administrativo – ignorado pela ditadura – cujos primórdios são de 1862 mas somente foi consolidado em 1988 e 1993). Mas depois o fenômeno foi explicado por especialistas no assunto: “stress corrosion”, ou corrosão por estresse. Pronto. Agora, em bom português: um viaduto feito para passagem de automóveis não o foi para trânsito de caminhões com materiais e concreto pesadíssimos que iriam para o prolongamento do viaduto. A construção não suportou.

Vamos do Rio dos anos 1970 para a Tatuí de hoje. Quatro anos sem manutenção ou avaliações preventivas por pessoal especializado, e com a impermeabilização crescente do solo, falta de escoamento das águas pluviais, lençóis freáticos rompendo o asfalto, a cada tempestade as velhas pontes foram sendo enfraquecidas enquanto a frota de veículos aumentava. Há meses ruiu a ponte do Marapé, na entrada da cidade, causando um enorme transtorno. Como era um acesso de uso frequente e vital para a cidade, o trânsito passou a sobrecarregar a ponte do Junqueira, que, claro, também foi cedendo – repitamos, por “stress corrosion” – para afinal também ruir.

O fluxo de trânsito ficou impraticável com esses dois desabamentos, e agora já sobrecarrega uma pequena ponte, que sai na Pompeo Reali, com intenso movimento de veículos diversos, ônibus, autos pesados, muito além da intenção primeira da obra da ponte.  

A nova administração municipal tem vários desafios pela frente. Há que usar de criatividade e sensibilidade para obtenção de verbas emergenciais do Estado, diante do chamado “fato da natureza”. Ah, se estivesse tudo em ordem, funcionando, para que as prioridades fossem para o lado social, extremamente carente, como a Saúde! O problema é que, fora isso, para determinadas emergências, os conflitos causados pela falta de manutenção na cidade, o desconhecimento da importância da absorção da chuva – leia-se: verde -, entre outros, podem colocar em risco vidas também por conta da morosidade causada pela falta de rotas de emergência, dificuldades nas saídas da cidade para casos de resgate críticos e outros.

Eis o desafio do momento. Esqueçamos os bêbados e as equilibristas, pessoas e partidos, o show tem de continuar. Em 1971, pouco se investigou a queda do viaduto da Paulo de Frontin. Hoje, em pleno estado democrático, há que se analisar tudo com objetividade técnica. Atormentam os novos administradores, com certeza, as noites de insônia, as preocupações, a procura emergencial por verbas, a urgente dispensa de licitação e o trabalho diuturno. Mas tudo isso pode ser atenuado com o apoio maciço da população, que já tem começado a acontecer, das empresas que podem colaborar, da solidariedade em geral. Porque não se pode jogar sobre uma só pessoa e sua equipe a responsabilidade de operar um milagre. Pelo contrário, trata-se de dotá-la do apoio necessário, de cooperar, como for possível, daqui por diante. O Conservatório de Tatuí pode não tapar buracos nas vias, mas certamente, com música e teatro, pode cobrir os vazios no espírito de todos, que, irmanados, dividem angústias e esperanças.