“Esperando Godot” é uma peça teatral da autoria de um irlandês que viveu na França, Samuel Becket (1906-1989). Escrita entre o final de 1948 e o início de 1949, originalmente em francês (“En Attendent Godot”) e traduzida para o inglês por ele mesmo (“Waiting for Godot”), pode ser encenada em um palco quase vazio, despojado, o que colabora para compor o clima da situação de angústia em que vivem os personagens principais, Vladimir e Estragon. A obra já foi estudada sob os mais diversos ângulos e disciplinas; Becket adentrava firme no chamado Teatro do Absurdo, envolvido nas ideias do francês Albert Camus. Em pesquisa realizada pelo Teatro Nacional Real Britânico em 1990, “Esperando Godot” foi considerada a peça mais importante do século 20 escrita em língua inglesa. Para o mundo todo, Godot deixou uma grande interrogação, um misto de apatia, desesperança e desejo de que alguém surja do nada para resolver todos os problemas. Mas seria realmente esse o desejo?
Sobre a peça, há analises existencialistas, freudianas, junguianas, sociopolíticas e religiosas dos mais variados matizes e origens. Mas à trama: os personagens Vladimir e Estragon ficam esperando por Godot, que simplesmente nunca aparece, e fica óbvia a associação do nome com God, Deus, em inglês, ou Gott, em alemão. E essa espera por alguém que nunca chega nem chegará torna bastante visível a perturbação e o conflito do autor sobre Deus, sua existência ou não e a apatia de Becket em relação a crer na existência do Pai. Certa vez, perguntado sobre se seria cristão, judeu ou ateu, Becket simplesmente respondeu que nenhum dos três. Transparece então a dúvida de uma luta intelectual-espiritual do autor consigo mesmo, em sintonia com o grande autor e pensador francês Albert Camus (1913-1960), da filosofia chamada absurdismo. Do Teatro do Absurdo também surgiram nomes que fizeram uma época, como Arrabal, Genet, Albee e Ionesco, autores de um rol de peças que contaminou intelectuais e a juventude de várias gerações, que pararam naquela “pergunta sem resposta”, para tomar emprestado o título de uma música de Charles Ives, “Unanswered Question”.
“Esperando Godot” é quase um subtítulo para este artigo que escrevo, mas vestiu como uma luva para o principal: o novo ano, 2017. E onde os dois – Godot e 2017 – se encontram, perguntaria o leitor? Entre as quase duas partes da enorme fenda que hoje divide o país – “eu e minha turma, meu partido, somos contra tudo da outra parte, só nós estamos certos”, e vice-versa, criando um vácuo onde residem os sem-ideologia, os sem-esperança. Esses são os que não se encaixaram nos estereótipos que moldaram a fogo as opiniões de um número grande de pessoas, hoje em uma espécie de estado melancólico e maníaco-depressivo coletivo, vencidos pela apatia e falta de horizontes. Porque simplesmente não querem enxergar e trabalhar por mudanças. São os que esperam um Godot, mas, como na peça, acham que ele nunca virá. São milhões encarnados em Vladimires e Estragons, esmagados entre as duas correntes majoritárias, “a nossa” e “a deles”, com conceitos pré-moldados principalmente nas redes sociais da Internet.
Se Godot é inalcançável, porque não palpável, não é visível, como esperavam Vladimir e Estragon, assim é Deus, que é Quem está em toda parte, e sempre esteve, porquanto não precisa “vir”, pois já está. Talvez aí se encaixe essa grande parte da população que, observada sob a ótica da fé, seria formada por agnósticos, ateus, ou mesmo os que não querem nem saber de nada, os conformistas.
Pois 2017 se descortina como um grande desafio, e isso vale para todas as esferas, seja no governo federal, estadual ou municipal e na vida de todos os cidadãos brasileiros. Se você não espera nada, então se recolha, volte-se para dentro de seu casulo e não contamine os demais. E tenha cuidado para não se tornar mais um “analfabeto político”. Texto atribuído ao alemão Bertold Brecht, também teatrólogo: “O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que, da sua ignorância política, nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, corrupto e lacaio das empresas nacionais e multinacionais”. (© 1950, mas parece escrito sob medida para os nossos tempos).
E para os que estão cegos de espírito, em dúvida ou conflito de fé ou esperança, para os pessimistas por natureza (mesmo sem nunca terem lido sobre a filosofia do pessimismo de Schopenhauer, um dos homens mais influentes dos séculos 19 e 20), lembro os singelos versos do Chico, em “Gente Humilde”, que contém uma simples mas bela pérola de confissão de apelo de fé quando as saídas parecem difíceis: “e eu que não creio / peço a Deus por minha gente / a gente humilde / que vontade de chorar”. “Eu que não creio peço a Deus” é uma descrição perfeita àquelas situações em que todos têm de se apegar em algo, algum tipo de esperança. Para esses da “fenda do meio”, é o momento exato. Apeguem-se, pois, e rumem para ajudar, e não destruir o que eventualmente for bom.
Paz e trabalho para um 2017 bem melhor. Só saídas, mas houve apenas uma entrada.