Está aberta a sessão do repente. Quem é do canto falado, da palavra cantada, que se apresente.
O som da voz, luz divina aos homens e animais, que no princípio, depois do Verbo, servia para os seres se comunicarem, fazer amigos ou apavorar inimigos e maus espíritos, além de conquistar terras e fêmeas, é a mais completa forma de expressão.
Houve polêmica com a indicação de Bob Dylan para o Nobel de Literatura. Sem entrar numa discussão que nunca será resolvida, acho que Dylan às vezes quase que “declama” seus poemas, mais do que canta. (E algumas vezes em versão caudalosa, como a original de “Like a Rolling Stone”, com dez páginas. Lembra-me a poetisa grega Safo [© 650 a.C.], do épico “Homero” [© 850 a.C.], que escreviam para ser declamado e meio cantado, assim como o bardo inglês Shakespeare [1568-1616]. Todos adeptos da palavra cantada. Novidade, portanto, não é Dylan).
O canto gregoriano, meio falado (“ad occasum laudabile nomen Domini”), tinha melismas que traduziam súplica e estado de contemplação, longos vaivens tricotados em poucas sílabas sobre os sons. O responsório da missa católica romana resistiu meio falado e belíssimo em latim, até tempos recentes. “Dominus vobiscum; et cum spiritu tuum”.
Schönberg, liquidificando a palavra, revelou-a em sua fase abstrata, mas traduziu para a língua de Goethe o texto escrito por Albert Giraud em francês. Belos pontilhismos no “Sprechgesang” do Pierrô Lunar, de 1912: “J’ai les vers luisants pour fortune / Je vis en tirant, comme toi / ma langue saignante…” (“Tenho os versos brilhantes por sorte / eu vivo mostrando, como você / minha língua cáustica…”).
A técnica, da época de nossos vovôs, é desconhecida das gangues “b-boying”e MC de N.York e da molecada do Vidigal carioca ou Capão Redondo paulistano. E antes do rap (“Rythm And Poetry”, “Ritmo E Poesia”), hoje “musiscigenado” até mesmo entre os “rappers” brasileiros, desconhecendo a história. Gêneros similares sempre existiram.
O rap americano não usa mais do que duas ou três notas. Já a suposta inovação que recitava o Jair Rodrigues – “deixem que digam, que pensem, que falem”, a seguir era melodiosa, quase uma escala inteira. Até “Águas de Março”, do Jobim, teria sido também precursora do rap, ou o divertido Caymmi do “João Valentão é brigão / pra dar bofetão / não presta atenção?”.
E os brados populares? (“É canja, é canja, é canja de galinha / a nossa seleção…” – cujo final me abstenho de reproduzir) da Copa de 1970? Ou o marketing político de “Getúlio, Getúlio, Getúlio e João Pessoa”, quem sabe o mais recente “o povo unido jamais será vencido” e afins? Ouviram o rap branco de classe média alta do Gabriel Pensador? “Existem mulheres que são uma beleza / mas quando abrem a boca (…) Lôrabúrra!”.
Moreira da Silva, o Kid Morengueira, frequentador contumaz do bas-fondda Lapa carioca, era rei da palavra, da métrica perfeita, e contava estórias nos seus sambas de breque. Em “Olha o Padilha” (1952), Kid lembra o delegado carioca, “caçador de playboys”. Preso, levado de camburão, na chefatura um barbeiro o esperava. Ordem do “delega”: “Raspa o cabelo desta fera”, humilhação para o “Chico cabeleira”. O breque: “Ah, ele quer ver minha caveira. Eu, hein? Se eu não me desguio a tempo ele me raspa até as axilas. O homi é de morte”.
Sublimes são os recitativos das “Paixões” (João e Mateus, entre 1724 e 1727) de Bach, narrados por um tenor. Canto falado é “A História do Soldado” (1918), de Stravinsky, com texto de Charles Ramuz. Um Fausto travestido de soldado entrega seu violino mágico para o capeta e segue, com direito a princesa, embalado em marchas, tango e ragtime, com tempero de folclore russo.
Aqui no Brasil, temos baiano, que mineiro diz que fala cantando, e mineiro, que baiano diz que fala cantando. E os cantadores, os repentistas que cantam falando e falam cantando: “Triste ô feliz é o cantadô / qu’eu apanhá prá dá o castigo” (Elomar).
E o “funkcarioca”, modismo que nada tem a ver com o “funk real”, do Sly Stone? A onda dos bailes cariocas é pura catarse, com raras ou quase nenhuma nota, um vomitar de palavras no jargão das gangues, como no “Tchu Tchuca” do Bonde do Tigrão (“vem aqui com seu tigrão / vou (…) te dar muita pressão”). Há o “Proibidão”, linha dos MCs Catra e Sabrina, em apologia à droga, ao tráfico e ao sexo pornô. (MC, aviso à moçada do pedaço, quer dizer “Master of Ceremony”, made in USA!).
É vício brasileiro “criar verdades” a partir de uma ilação. Essas, como dizia Goebbels, repetidas muitas vezes, tornam-se reais para quem comprar. Nossas “verdades” não têm prazo de validade, infelizmente. Uma das mais curiosas delas é a do forró. Seriam bailes dos gringos, na Base Aérea de Natal, festas para todos, as “for all”, de onde teria surgido o termo forró. É? Mas muito antes disso Chiquinha Gonzaga compôs seu “Forrobodó”, palavra que desde a segunda metade do século 19 e dividia com forrobodança (forró!) o nome dos bailes de maxixe (“sô macho, ixe”).
Meu povo, estamos “à vontademente” redimidos. Em música nada se cria, nada se rejeita, tudo se aproveita. E termina aqui esse desafio de repentista, para que o Congresso Nacional, “no uso das atribuições”, etc., decrete, revogadas disposições em contrário: “fica abolido a partir desta data, a bem público da pouca saúde do imaginário nacional, o rigor científico da lorotada musical brasileira”. Estão encerrados desafio e sessão e, concordando ou não, salve o bardo Bob Dylan.