Henrique Autran Dourado
Toda vez que penso nesse gentílico lembro-me dos tempos em que, ainda no colégio, cabulávamos aula para ir ao Cine Paissandu, no Rio, servir-nos do manjar da juventude da época: filmes de arte. Era um título por dia, à tarde, durante a semana, e tinha público. Ali conheci as boas fitas do Godard, talvez o mais maluco de todos os cineastas. Era ambíguo, lançava grandes questões no ar, e, mesmo ateu, rodou o belo “Je vous Salue, Marie” (“Eu te saúdo, Maria”), sobre a mãe do Senhor e José, o nascimento do Salvador e seu paralelo moderno. Mas a produção que mais me intrigou foi A Chinesa (“La Chinoise”, 1967), mesmo.
O filme foi rodado quase que inteiramente dentro de um “aparelho” – nome dado a qualquer esconderijo ou local de reuniões secretas de estudantes ou revolucionários da época. Os personagens são uma socióloga maoísta e seus companheiros, entre discussões e leituras de trechos do histórico “livrinho vermelho” do líder comunista chinês Mao Zedong (Tsé-Tung), dezenas deles empilhados no apartamento. Apesar da visível pobreza técnica e da locação – alguns grandes filmes foram feitos em condições adversas e paupérrimas -, é um marco. Para os raros sobreviventes da doutrina de Mao, uma ode ao revolucionário comunista autor de feitos heroicos, como atravessar a nado uma enorme distância – em montagens fotográficas, claro -, contraponto atlético ao estalinismo; em atrocidades, nada devia ao soviético. Havia um outro lado no filme, que me puxava pelo pé, uma crítica ao “aparelhismo” e o fascínio de parcela da juventude por Mao. Com o passar dos anos, consolidou-se em mim esse aspecto de crítica do filme – Godard era anarquista e ironicamente ligado a um tosco existencialismo.
A China de Mao foi uma grande mentira que perdurou do golpe, em 1949, até 1976, com a morte do líder. Retratava um país sem fome, igualitário, de trabalhadores felizes nos meios de produção do Estado. Divergências, opiniões, arte, como em todo regime autoritário e autocrático, não tinham espaço, já que o onipotente regime tudo dava (mas punia exemplarmente quem não o seguisse às cegas).
Um salto para a atualidade, e um novo velho regime, a velha bandeira, o velho epíteto República Popular da China, o velho partido único, o mesmo discurso messiânico de seus líderes. Em 1978, dois anos após a morte de Mao, o país começou a empreender uma grande reforma econômica que hoje derrubou a linha de pobreza para 8% graças à imensa industrialização que o leva à segunda potência mundial, atrás apenas dos EUA. Conquistou assentos de importância em inúmeros organismos internacionais, como o Conselho de Segurança da ONU, a OMC e outros. O PIB chinês alcança mais de 20 trilhões de dólares, e a renda per capita (PIB do poder de compra) chega a US$ 15 mil (R$ 82 mil) anuais. A antes monolítica economia de Estado permitiu o surgimento de grandes fortunas individuais e empresas que hoje competem com as melhores do mundo, quando não produz insumos eletrônicos ou componentes pré-montados.
O mouse do meu computador é chinês! Ah, o teclado sem fio também. E meu relógio, o celular e seu carregador, a calculadora, o multímetro, o aparelho para fisio no tornozelo e, creia, os medicamentos, principalmente os genéricos, que usam insumos chineses, paquistaneses ou indianos. “Nossos” chineses costumam ser bons e duros negociantes, bem ao seu estilo mundo afora, ótimos cozinheiros ou gestores de restaurantes, massagistas de técnicas milenares, agricultores, cientistas e até gênios de nossa música ocidental, como o violoncelista franco-chinês Yo-Yo-Ma e o prodígio do piano Lang Lang (1982), que já assombrava o mundo quando criança. Ironicamente, o país socialista criou alguns dos mais poderosos bilionários do mundo, como Jack Ma, dono de uma das maiores cadeias de vendas existentes, a Alibaba (que me vendeu massageador, aliás), William Ding, poderoso “tycoon” dos games on-line, e Ma Huateng, detentor das patentes de aplicativos e jogos como WeChat e League of Legends. A TikTok, de vídeos e trocas, tornou-se tão poderosa que foi proibida pelo governo norte-americano para uso no país sob alegações de viés claramente fascista e xenófobo de Trump, argumentos que não escondiam uma terrível dor de cotovelo: especialistas de todos os cantos projetam a China como a futura primeira potência mundial em alguns anos.
Dúbio como sua economia e ideologia atuais ou o filme de Godard, o país de 1,4 bilhão de habitantes tornou-se também paradigma na área médica e de pesquisa, uma produção sempre potencializada em grandes números. De lá o nosso Butantan importa insumos para a fabricação de uma vacina de pleno sucesso contra o Covid-19, e em breve terá autonomia suficiente para fabricar exclusivamente nas suas instalações de São Paulo a popular Coronavac. Isso, mesmo ante uma altamente reprovável xenofobia sob o manto de preconceito ideológico patrocinado pelos altos escalões brasileiros, uma sinofobia política que entre outras coisas tenta erguer barreiras para produtos como a tecnologia 5G chinesa, que já revoluciona o mundo. Usam as mesmas obstruções focais já empreendidas contra a vacina, mas terminaram perdendo, e hoje o consórcio sino-brasileiro domina não apenas a vacinação dos brasileiros quanto boa parte da produção interna nacional.
Chegando minha vez de ser vacinado – e que não demore tanto -, aceito a Pfizer, claro, mas ficarei contente com a segurança que sinto na chinesa. Na dúvida, claro, “La Chinoise”.