Henrique Autran Dourado
Desde antes das cidades bíblicas de Sodoma e Gomorra já se sabia de práticas sexuais diversas das ‘normais’, do homossexualismo, bissexualismo e transexualismo ao chamado “kinky sex”. Os capítulos 18 e 19 do Gênesis veem aqueles pecados como os piores de todos, merecedores das “labaredas de enxofre” do céu. A destruição dessas tribos por Deus foi o castigo imposto aos que viviam em pecado. Refletindo sobre esse passado bíblico, concluímos que esses comportamentos tidos como “anormais”, que se tornaram símbolos de condutas fora do ‘sexo casto’, sempre existiram.
“Menino veste azul, menina veste rosa”, festejou a atual ministra Damares Alves em convescote particular, ‘meme’ que grassou nas redes, longe milênios das duas cidades destruídas ao norte da Palestina; traz à luz outra cena simbólica, Adão e Eva. Nem ele estava de azul nem ela de rosa – consta que nem estavam vestidos. Ademais, para que cobrir suas vergonhas, se eram apenas os dois? Depois do pecado, uma rama de videira caiu bem sobre a genitália do casal, fantasiam ilustrações posteriores.
Quem inventou de associar sexo masculino com azul e feminino com rosa? Poema simbolista sobre a virilidade dos céus sobre a fragilidade da flor? (Concepção, aliás, para lá de machista). A ideia surgiu no século 19, para distinguir os sexos masculino e feminino desde o nascimento (PAOLETTI, Barraclough. “Pink and blue: telling the boys from the girls in América”. Ind: IUP, 2012). Damares fez eco à tradição norte-americana, hoje espalhada pelo mundo, e, tendo a frase surgido em Igrejas, foi via uma delas que a ministra importou sua bandeira. Ah, o ultrassom veio para assegurar aos pais a escolha do enxoval apropriado para seu rebento! (A partir daquela telinha não 100% infalível que só o técnico, no início da gravidez, entende).
A partir do século 20, as massas de discordantes da ‘normalidade’ começaram a se organizar, frequentemente como força política, a exemplo do LGBT e suas variações. Nos países livres, ao menos uma vez ao ano grandes paradas gays – de todos os gêneros, dos básicos às mais coloridas variações – tomam as ruas atraindo grande número de simpatizantes, muitas vezes com seus filhos, em uma festa transbordante de sorrisos, caras, bocas, lamês e purpurina. São eventos absolutamente pacíficos e, quando em tempos sadios, exemplos de aglomerações organizadas como poucas.
No meu colégio jesuíta no Rio dois colegas de turma não se encaixavam nas brincadeiras ‘de macho’, ou no futebol: apenas observavam. Um deles, hoje cantor famoso que se casou com o namorado após uma antiga união de fachada imposta pela indústria fonográfica, tinha bom trânsito entre os colegas: cantava bem, fazia um ótimo cover de Lennon e McCartney e era um bom papo. Éramos uma turma libertária, os anos 1967/70 que o digam. Todos mereciam nosso respeito, que se estendia dos “happenings” nos jardins de Burle Marx no MAM à praia de Ipanema, dos topless à tanguinha de crochê introduzida pelo jornalista Gabeira após a anistia lenta, gradual e irrestrita do Gen Figueiredo.
Pessoalmente, respeito e sou simpático a qualquer opção ou, para quem não crê em ‘escolha’, forma de realização pessoal da sexualidade. Cada um vive como quer, desde que, como todos, respeite a vida alheia. Há um número crescente de ‘trans’, opção já comum, e cifras ascendentes de assexuados, gente que não encontra em seus dotes natos meios para a realização pessoal.
George Orwell, em seu premonitório “1984”, falou da “Newspeach”, que expurgava do vocabulário, por decisões impostas pelo governo central, palavras ou expressões que pudessem desviar a população do pensamento oficial – uma civilização quase lobotomizada, sem opinião, sentimentos ou prazer.
Lembro-me de, nos EUA, ter brincado com uma amiga que em português casa, praia e rua são palavras femininas, enquanto em inglês house, beach e street eram assexuadas, ao que ela retrucou que o inglês é assim, reserva apena aos seres vivos a sexualidade, e mais: “my dog is a lady”, complementaria, para definir-lhe o sexo. Hoje, “boyfriend”, e “girlfriend” referem-se a quaisquer casais de parceiros. Preocupante é que existe numa neófita minoria um vício, o de “assexuar” as palavras para acomodar todas as opções.
Já protestei contra uma jornalista, escrevendo à então ministra da Cultura Marta Suplicy (com quem eu havia trabalhado longos anos atrás), reprovando o aporte da Lei Rouanet a uma edição ‘simplificada’ de Machado de Assis, um crime! (A aprovação, escreveu ela de volta, havia sido na gestão anterior, e mais: ela era contra quaisquer mutilações, garantiu). É natural que eu também objete fortemente quanto a certa forçada “novilíngue”, modismo que substitui as letras finais das palavras por “e”, ou, creia, por “x”: “todxs estão convidadxs”, supostamente para acomodar o arco-íris de gêneros.
Deixo aqui um enorme abraço para todos, de todas as opções e cores, mas não compactuo com os diletantes das redes que destroem a “última flor do lácio”, a língua portuguesa brasileira! Já vi “novilinguistxs” que não pertencem à comunidade LGBT, nem sei se simpatizam, só querem aparecer (ou proteger sua ignorância). Salve Machado, Bandeira e Drummond de seu panteão intocável contra pessoas contaminadas por modismos, que nunca leram absolutamente nada. O vício, mesmo ‘pingado’, não contribui para causa outra que não seja ampliar e perpetuar a ignorância e macular a língua de nossos mestres. Salve a comunidade colorida e o vernáculo!