Henrique Autran Dourado
Era um jovem, mas com jeitinho mineiro no trato com as pessoas e habilidade na escrita, chegou a gente graúda nas artes e na política. Dono de bom papo, logo deixaria os “bicos” por empregos mais sólidos. Como taquígrafo na Assembleia Legislativa (MG), veio a conhecer alguns grandes líderes, de Luís Carlos Prestes – deputado então na legalidade – a Juscelino Kubitschek, com quem trabalharia no governo. Quando o diamantinense se lançou à Presidência, lá foi ele também.
Mudou-se de mala e cuia para o Rio, então Distrito Federal, preparando terreno para seu destino com JK no mais alto posto do país: era 1955, e tinha apenas 29 anos de idade (JK tinha predileção por assessores intelectuais que lhe escrevessem bons discursos, interpretassem seus anseios, aturassem suas manias e lhe apontassem caminhos). De mala e cuia, logo depois, veio a família, esposa e três filhos – duas meninas e um pequeno de dois anos -, instalando-se em um apartamento alugado no terceiro andar de um prédio sem elevador no Jardim Botânico, a poucos metros de onde, 46 anos depois, aconteceria o dramático sequestro do ônibus 174, vindo da PUC.
Tudo isso é apenas uma referência. Os três filhos – um carioquinha haveria de nascer dois anos após a mudança – ficavam juntos em um quarto só, depois agregando o caçula da prole no mesmo aposento. Correrias, subidas e descidas pelas escadas a pé ou empurrando bicicletas, parecia um lugar propício à diversão: do outro lado da rua onde décadas após aconteceria o sequestro do 174, um enorme muro abrigava um bosque com uma mansão abandonada que pertencera ao engenheiro Henrique Lage e sua diva, soprano Gabriella Besanzoni, paixão que trouxe da Itália. Hoje, é um imenso parque público que preservou natureza e arquitetura, incluindo aí as cavernas com estalactites e riachos internos – e seus moradores por usucapião da natureza dormindo pendurados, os morcegos.
Para ajudar a esposa em um de seus muitos atributos, ele costumava levar o terceiro filho para ter os cabelos podados na barbearia em frente ao Palácio do Catete, sede da Presidência. O estilo do corte seria banido passados os anos, mas hoje retornou à voga no mundo: “Príncipe Danilo”, cabelo encimando o topo da cabeça, ao redor aparado a zero. Após o corte, a recompensa: um saco de pãezinhos para o garoto picar e atirar aos cisnes no lago do Palácio, sob a vista atenta dos serviçais e motoristas. (Entre eles, João Batista, dono de um luminoso dente incisivo de ouro. Adorava tagarelar, e ao dirigir o fazia virando-se para trás, pânico dos passageiros. O carro, um velho Henry Jr. preto, tinha um plástico cobrindo a janela traseira esquerda, pois o vidro não se encontrava no incipiente mercado de peças, e a indústria automobilística brasileira simplesmente não existia).
O jovem mineiro, com suas habilidades, cativou o presidente, que criou para ele um cargo que até então não havia, o de secretário de Imprensa, tal qual outros países, mais tarde transformado em porta-voz. (No ano 2000, a Fundação Joaquim Nabuco publicou dois pesados volumes em uma caixa, “No Palácio com a Imprensa”. São depoimentos dos secretários e porta-vozes da Presidência, do primeiro – o capiau de Monte Santo de Minas que foi de BH para o Rio – ao último, Singer. Abre o primeiro capítulo nosso personagem – agora já podemos chamá-lo assim – seguindo-se entre outros Carlos Chagas, Alexandre Garcia, Antônio Britto e Ricardo Kotscho, até André Singer, em sucessivos governos).
Cabia ao secretário mineiro ora ajudar na redação dos discursos, ora na tarefa de esconder da população um infarto presidencial – tudo pela estabilidade democrática! Não bastaram as revoltas debeladas da FAB de Jacareanga e Aragarças, a própria posse havia sido garantida por um garboso marechal Henrique Teixeira Lott, depois ministro da Guerra, que desfilou em seu “liforme” branco cheio de medalhas com JK no Rolls Royce da Presidência, simbolizando o apoio do Exército sob seu comando ao presidente eleito pelo voto.
Como pessoa, aquele secretário de governo era um cidadão de extrema simplicidade: dirigia sua Kombi, onde carregava filhos e dedicada esposa nos poucos passeios que o tempo lhe permitia; ou nas viagens a BH para visitar a família – às vezes, levava a empregada e quituteira, para deixá-la em Conselheiro Lafaiete, perto de BH, para que também visitasse os seus. Gostava, além dos muitos livros, de escrever alucinadamente, visitar e receber amigos, começando pelos mineiros velhos de guerra Fernando Sabino, Hélio Pellegrino, Otto Lara e Paulo Mendes Campos – além de Clarice Lispector, em almoços domingueiros. Uísque, chope? Raros, o tempo não o permitia. Pôquer? Um ou outro, só de brincadeira. “Para quem foi criado em Monte Santo está bom demais”, dizia.
Escrevi este artigo por duas razões. A primeira, abordar a diferença de estilo de vida entre um titular de alto cargo público daquele tempo e os de hoje: gastos exorbitantes, alta remuneração e penduricalhos de toda sorte que catapultam os salários ano a ano. A segunda, e para mim a principal: lembrar o escritor Autran Dourado – o escritor, secretário de imprensa mineiro e, antes de tudo, pai -, que no dia 18 de janeiro passado faria 95 anos; homenageá-lo pelo Dia dos Pais, 8, e no dia 28, quando sai a edição deste jornal com o artigo. Uma feliz conjunção em torno do número 8, o do infinito, se deitado. Do tamanho do amor e da admiração que nutrimos por ele.