Foi-se o tempo em que a educação formal, na escola, podia ser plenamente exercida pelo professor, o mister a quem se confiava a guarda do “futuro” das crianças, então instruídas a aprenderem a ler, escrever e fazer contas, entre outras áreas do conhecimento.
Mais que isso, porém, as crianças eram preparadas para a sobrevivência num futuro mundo real, onde sobram dificuldades – senão crueldades – e faltam barras de saia de mãe e colinhos de papai.
Nesse método educacional, mesmo o tão execrado “bullying” tinha seu valor e função. Óbvio, dentro de determinado limite, simplesmente ia ensinando a criança a se defender diante das agressões – algo comum na vida adulta.
No momento, há escolas que chegam a proibir até mesmo os apelidos entre estudantes, os “sarrinhos”, tudo a pretexto de não se ofender a frágil condição emocional dos alunos…
Fora o fato de que o humor (ainda que um tanto cruel na natureza infantil) é fundamental na fase adulta para o indivíduo se sustentar emocionalmente diante dos desafios diários (e a censura oprime o senso de humor), fato é que o adulto não tem direito de se fazer de ofendidinho quando a vida lhe estapeia, não pode correr para a proteção dos pais…
Ok, mas a quem cabe ter bom senso e impor a marca de limite? Ao professor, claro, aquele que mereceria receber confiança, até por ser o profissional mais importante de todos: o que possui o conhecimento e deve compartilhá-lo paciente e generosamente.
Mas, agora, não. A verdade é que o professor não é mais visto como “mestre”, sequer é respeitado pelos próprios alunos – em generalização, talvez, indevida, mas que bem exemplifica a realidade geral, especialmente do ensino público.
Antes, o aluno tinha “medo” do professor, e “até” (não “apenas”) por isso o respeitava; agora, é o professor quem tem medo. Ele sabe que, diante de uma bronca pouca mais incisiva, pode ser processado pelos pais da criança – isso se não for agredido fisicamente pelo aluno…
E ainda mais preocupante é a expectativa de que, se não está bom, ficará pior – pelo menos a se considerarmos as novidades dos países “mais desenvolvidos”. Nesta semana, artigo do jornalista João Pereira Coutinho alerta sobre a histeria da superproteção.
Ele registra o absurdo de que a palavra “violar” pode ser ofensiva para alunos, despertando em alguns deles “memórias traumáticas que devem permanecer nos calabouços da consciência”.
O caso mais significativo aconteceu em Harvard, onde estudantes “desconfortáveis” com o termo pediram aos professores para o evitarem (revista “Atlantic Monthly”).
Segundo os autores da reportagem, Greg Lukianoff e Jonathan Haidt, crescem nos Estados Unidos os casos de “microagressões” –palavras, conceitos, meras alusões que põem em risco o “bem-estar emocional” dos alunos.
A premissa – inacreditável! – sustenta que os alunos têm direito a esse “bem-estar”. “As universidades devem ser ‘zonas de conforto’ onde nunca se deve escutar aquilo de que não se gosta” (!!!).
(E não temos, todos, direito a uma “vida” assim? Sem nada que nos desgoste? Não, não temos… E nem podemos saber se algo assim seria vida…)
E segue a bestialidade: por ela, os professores universitários são aconselhados a “emitirem avisos prévios antes de ensinarem matérias potencialmente ofensivas”.
Um exemplo do artigo: se o assunto é literatura, o professor deve avisar previamente a turma que “misoginia” e “abusos físicos” fazem parte da obra “O Grande Gatsby”, de F. Scott Fitzgerald.
“Caso contrário, uma alma mais sensível pode desmaiar em plena classe e a carreira do professor estará terminada. Pergunta óbvia: como se chegou até aqui?”, questiona Coutinho.
O artigo norte-americano culpa os pais dos universitários de hoje, “que educaram as suas crianças com uma obsessão pela segurança que não existia em gerações anteriores”.
Coutinho concorda e aponta o livro “How to Raise an Adult” (como educar um adulto), escrito por Julie Lythcott-Haims. Diz ele: “A sentença da autora, antiga decana da Universidade de Stanford, é glacial: antigamente, os pais preparavam os filhos para a vida; hoje, os progenitores preferem proteger os filhos da vida – e isso vê-se nas pequenas coisas e nas grandes coisas”.
“Começa logo na infância, quando o perigo de pedófilos, sequestradores ou marcianos obriga os pais modernos a aprisionarem os filhos em casa. Resultado: a epidemia da obesidade infantil, alimentada por horas de sedentarismo, suplantou em muito os acidentes normais das antigas brincadeiras da infância”, acrescenta o jornalista.
“Mas a obsessão securitária dos ‘pais-helicóptero’ (expressão que designa os espécimes nascidos entre 1946 e 1964) não fica na infância. Depois de proteger os filhos nos primeiros anos, é preciso continuar a tratá-los como flores de estufa na escola e até na universidade. Como?”, segue questionando.
A resposta seria “escolhendo por eles (cursos, amigos, até tempos livres); pensando por eles (com exércitos de explicadores para todas as matérias curriculares); e até vivendo por eles (de preferência, medicando qualquer comportamento ‘desviante’, como a preguiça saudável ou o excesso de energia)”.
Essa atitude teria uma consequência: “a (grande) quantidade de alunos que a autora encontrava na universidade literalmente à deriva: insones; deprimidos; ansiosos; incapazes de tomarem uma decisão por medo psicótico de fracassarem”.
“E, quando a decisão era inevitável, o comportamento era uniforme: um telefonema aos pais para que fossem os pais a decidirem por eles.”
Para Julie Lythcott-Haims, a educação “moderna” fez dos “adultos” de hoje seres “existencialmente impotentes”. “Porque os pais, na ânsia de tudo protegerem e controlarem, alimentaram nos filhos uma mentalidade de vítimas: seres frágeis e amedrontados que simplesmente não sabem como ‘funcionar’ no mundo que existe fora do aquário”, complementa o jornalista.
“Não será de admirar que, educadas perpetuamente como crianças, as crianças universitárias de hoje vejam ‘microagressões’ em cada frase, curso ou professor. Tudo é ameaça para quem foi constantemente protegido de qualquer ameaça. Um livro. Uma frase. Um conceito. E, claro, um preconceito”.
No livro, Julie Lythcott-Haims lamenta que os filhos de hoje não tenham a atitude dos filhos de ontem: “certa rebelião existencial contra a autoridade dos progenitores, condição primeira para forjarem uma identidade independente. E poderem voar com as próprias asas”.
“Essas asas não existem. Elas foram destruídas pelo amor sufocante dos pais durante anos e anos de gaiolas douradas”, conclui Coutinho. É, infelizmente, a educação não segue mais os traçados da saudosa cartilha “Caminho Suave”. Daqui para frente, só mais solavancos. E salvem-se os filhos que puderem.