Henrique Autran Dourado
Pesquisa feita na Inglaterra revelou que grande parte dos médicos e cientistas da área viu seu talento despertar por volta dos dez anos de idade, já em plena fase analítica. Não se trata, portanto, de um delírio infantil sonhar-se um deles, é um desejo que flui na consolidação de vocações. Tal sonho costuma ser conjugado com certas particularidades, algo como um interesse espontâneo por assuntos médicos, como livros e filmes na TV, do galã Dr. Kildare ao carrancudo Dr. House.
A paixão se revela toda vez que o tema ressurge como sonho à frente da criança, como se ela estivesse paramentada mentalmente, um pequeno especialista a enfrentar suas quimeras: vírus, bactérias, cânceres e outros, moinhos a vencer em lutas quixotescas permeadas de muitas tristezas, desgostos e frustrações. Mas é também um caminho que reserva ao ator desta carreira uma intensa satisfação ao se deparar com a indizível conquista da vitória, um pódio único que é sua grande realização pessoal: a cura.
Também passei por esses devaneios de branco, como muitos meninotes. Quando ia a Belo Horizonte visitar meus parentes, via com especial atenção um tio que não apenas me salvou, transformou-se em meu paradigma de profissional. Inteligentíssimo, perfeccionista, eu o vi, ainda jovem, sair correndo da casa de meu avô após um telefonema do hospital convocando-o. Rápido como um raio, como dizia minha mãe, lá ia Marcelo Campos Christo atender uma emergência, em pleno fim de semana.
Quanto ao mencionado interesse espontâneo da criança em pesquisar sobre o assunto, atraía-me o porão da casa de meu avô, velhos livros que despertavam sobremaneira minha curiosidade. Nos de química, por exemplo, decorava da tabela periódica de elementos a fórmulas como o ácido sulfúrico e o cloreto de sódio – muito embora elas não me fossem de serventia alguma. Aos 10, 12 anos, achava lindas as fórmulas, plasticamente até. (Curioso, minha filha ainda cedo apaixonou-se pela química e hoje é doutoranda pela USP e pesquisadora da Fapesp. Parece que essa “mosca azul” a picou fundo).
Moleque, eu invadia uma gleba de 53 hectares, ao pé do Corcovado, que ostentava um belo palacete. Na época abandonado e hoje um lindo parque, o imóvel pertencera ao engenheiro Henrique Lage e sua amada, a soprano italiana Gabriella Besanzoni. Refúgio de traquinagens, galgávamos o alto muro para adentrar o paraíso – bem perto do apartamento onde morava, no Jardim Botânico carioca. Dentro, “arpoávamos” jacas armados com as flechas de uma besta doméstica e invadíamos matas, para nós “nunca dantes desbravadas”, lembrando Camões. E chegávamos a uma enorme caverna com estalactites, mimo do engenheiro à sua musa.
Mas onde essas aventuras no assunto do meu tio? Pois foi de morcegos da caverna que contraí via respiratória uma histoplasmose, de um fungo que provoca uma série de problemas, não raro o dito “êxito letal”. Minha mãe levou-me a vários pneumologistas, até um certo Dr. Aloísio, “crème de la crème”, mas nada de diagnóstico. Enquanto isso, meu tio Marcelo revirou livros, pesquisou e estudou tratados e publicações médicas até chegar às evidências que resolveriam a charada. Mandou vir dos EUA um teste e sim, era a causa do nódulo linfático. Seguiu-se o tratamento específico e a cura não tardou.
Apesar de ter outro tio, José Carlos, irmão de Marcelo e também um médico fabuloso, devido ao meu caso de histoplasmose minha admiração pelo primeiro inflou-se: quando crescer, quero ser ele, como se diz. Marcelo chegou a trabalhar com o Dr. Zerbini, cirurgião cardiovascular que realizou o primeiro transplante de coração no país; criou um método para operar o baço evitando extraí-lo e ainda uma técnica de inserção de marca-passos. Para mim, tinha um defeito – ou virtude, concluo agora -, não lhe agradar meu sonho com a carreira de médico. Resmungava sempre, como bom mineiro, sobre a dureza da profissão, a exaustão, o “burnout” – algo como “queimar a mufa”. E insistia para eu seguir o que ele enxergava, meus supostos dotes artísticos, como o desenho e a música.
Talento me sobrava para encher-lhe a paciência – “menino curió”, dizia meu pai como bom caipira – até que um dia aceitou levar-me para assistir a uma cirurgia cardiovascular no hospital de BH que ele dirigia, o Felício Rocho. Era uma troca da válvula mitral por uma prótese, coisa nada simples. Colocou-me de pé sobre um banquinho atrás do pano entre a cabeça do corpo da paciente, pediu-me para ficar pressionando compassadamente uma espécie de bomba de borracha. A abertura com o bisturi elétrico, “fzzzzz”, senti como se fosse uma faca em brasa na manteiga. E o cheiro, ah, o cheiro: regurgitei na máscara e meu tio, ao olhar para cima, mandou nervosamente me tirarem dali, “se esse garoto cai eu vou preso!”. Depois de limpar meu rosto e respirar um pouco, levaram-me embora, deixando para trás o centro cirúrgico, o sonho da medicina e o talento que não tinha. Reza o ditado que de médico e de louco todo mundo tem um pouco, títulos que me bastariam.
Toda essa história pessoal vem ilustrar minha afeição pelos que trabalham cuidando das pessoas e salvando vidas. Especialmente agora, nos tempos cruéis de pandemia, minha admiração pelos médicos transborda do coração. Fora a periculosidade, é um trabalho que estressa, distancia os profissionais de suas famílias, cria-lhes problemas de ordem psicológica e coloca em risco suas próprias vidas. A eles, salvaguardados pelas vacinas e protocolos, o mundo deve incontáveis vidas nesta pandemia.