Henrique Autran Dourado
Ainda parecia muito distante a minha vez de receber alguma vacina. O ritmo da campanha em nosso país é desanimador, dada a política confusa e inoperante do executivo, aliada a um desprezo infantil pelo assunto. Para mim, como mais de 80% dos brasileiros que nelas confiam, era questão de fé que a chance viria. Pessoas com idade cada vez mais próxima à minha já sendo vacinadas, os prazos contabilizando sequências em atropelos. Mantive-me firme, minha vez chegaria fosse qual fosse o andamento da toada. Só não sabia que viria tão de súbito.
No dia 20 de abril, soube por minha filha de SP que minha faixa de idade já estava sendo chamada aqui, era a minha chance de viver aquele instante. De pronto, entrei no carro e fui direto ao centro, não sem antes escolher a unidade mais conveniente para mim, a UBS “Aniz Boneder”, na praça Adelaide Guedes, coração de Tatuí. Chegando nas redondezas, vi uma fila de carros subindo na transversal, palmo a palmo. Engatei logo atrás do último, como em um trenzinho sem apito nem trilho, enquanto aos poucos, lá na frente, saía mais um vacinado, depois outro, e mais outro, a composição subindo devagarzinho. (Ninguém tinha medo de perder o lugar, certamente a ansiedade de estar chegando a cada para-choque que se movia: um metro, meio ou menos).
Entrando na rua da UBS, vislumbrei uma bendita tenda cinza; nada de místico, nada de bênçãos, ofereciam uma chance à população, um “voucher” com o efeito espiritual de encorajamento para prosseguir. Talvez como um primeiro bilhete de ingresso, abrindo caminho para a boa proteção do segundo, em data estipulada pelos técnicos, para depois prosseguir com todos os cuidados possíveis a fim de que a proteção trazida pelo derradeiro “jab” (no boxe, em inglês, soco direto, ou espetada) garantisse a segurança possível contra a doença. Além de mortal, ela chacoalha o planeta e provoca medos e fobias, cria disputas políticas, econômicas e inúteis desavenças.
Passou uma hora, nada a reclamar. Dividia-me entre redes sociais no celular e músicas no pendrive do carro, perdia-me em abstrações e pensamentos, quando fui chamado por uma enfermeira com olhos de sorriso. Ela e mais duas, vestais da saúde com seus paramentos alvíssimos, aguardavam, sendo a dos olhos encarregada de preencher uma ficha onde estava escrito “AstraZeneca”. Após a conferência dos documentos, um prólogo: eu estava recebendo a vacina da Fiocruz, e deveria, data assinalada no cartão, retornar em 12 semanas. Tudo certo e feito, agora um lance maior, coisa de dois metros, e cheguei ao anjo encarregado de aplicar-me a dose, retirada de um tipo elegante de geladeira de piquenique prateada. Ah, a bendita seringa e logo a picada, aquele “jab” de direita (novamente o jargão do boxe!) em meu braço esquerdo, eu havia chegado dirigindo. Uma aplicação segundos mais demorada do que as intramusculares de praxe seguida não de dor, mas de uma leve tensão muscular interna. Liberado e dando espaço para mais um, fui-me embora pleno de uma sensação difícil de ser explicada.
Houve uma ironia do destino: há três semanas escrevi um artigo para este espaço dizendo que tomaria qualquer vacina, pois todas proporcionavam efeito de proteção similar, e fiz a defesa da Coronavac, malhada como Judas pelo alto comissariado e xenófobos de plantão. Esperava pela dita “a chinesa”, que deu título ao artigo que mencionei e é mote para ataques contra a nação que é nossa maior parceira, futura maior potência do mundo. A ironia é que, mesmo torcedor da Coronavac, fui selecionado para a Oxford-AstraZeneca – não sei se por sequência lógica, randômica ou sabe-se lá qual critério.
Minha filha Marta, que mora em Londres e já tomou os dois “jabs” da Oxford a que tinha direito, disse-me que eu poderia sentir dor no braço, enjoo, sonolência – ah, vê se para por aí, disse eu, para por aí porque logo, logo essas menções a efeitos colaterais poderiam me fazer senti-los por autossugestão. Todas as vacinas, lembro-me desde criança, são passíveis de provocar sensações diversas, e pensar nelas pode nos fazer senti-las, mesmo que não sejam “reais”.
Outro momento ímpar foi o de sentir aquele “voucher” de que falei no início, um passe e um passo rumo à esperada proteção de uma segunda dose. Alguma coisa entre a satisfação – muitos se comovem! -, o alívio, o sentir a proteção emocional tão confortante em momentos de pandemia. Pensei na família e todos os irmãos-cidadãos do mundo, desejando que a luz verde clareasse em breve para eles também. Todos merecem desfrutar dessa confiança interior, mas repito o alerta de que ser vacinado não é receber uma autoproteção para cair na gandaia: há que se sentir como um cidadão que está colaborando, como parte da coletividade, para o controle da pandemia.
Uma amiga jornalista do Paraná também teve sensações diferentes, uma espécie de completude, pensei eu ajudando, e chorou copiosamente durante algum tempo. Não que os cientistas da Fiocruz tenham adicionado o mágico pó de pirlimpimpim aos insumos da vacina, trata-se de uma sensação de leveza que emana de dentro de nós próprios para nós mesmos. Fiéis depositários das angústias de mais de um ano de confinamento, nossos corpos e mentes são confortados por este efeito misterioso da vacina.
Seja inoculado assim que puder, qualquer que seja a vacina, faça campanha, trilhe o caminho para o porto seguro com distanciamento social e proteção. Assim ajudaremos a sufocar esta ameaça surreal ao planeta.