Figuras musicais que conheci Joe Maneri”





Joseph Maneri (1927-2009) era um figuraço e tanto. Baixinho, peruca meio cor de acaju, meio louco. Minto, inteiramente louco, mas tinha seu fã-clube, pela figura quase mítica que representava. Falava besteiras a sério, como chamar o compositor austríaco Schubert (1797-1828) de “Galochabird” (“pássaro galocha”). Toda semana, prometia contar sobre o “chapéu de Wagner”, grande compositor de óperas alemão, promessa nunca cumprida que lembrava a peça de teatro de Samuel Becket, “Esperando Godot” – Godot era um personagem que nunca vinha, deixando os outros à sua espera (em Becket, Godot seria o apelido de “Gotter”, Deus, em alemão). Voltando ao Joe Maneri, nada de chapéu de Wagner, ele sempre adiando o assunto. Isca de pescador para a atenção dos alunos? Mas sua figura carismática já bastava!

Sentia-se à vontade em todas as linguagens, de Bach a Stravinsky, e foi um dos herdeiros de Alban Berg, da chamada “Segunda Escola de Viena”, com Schönberg e Webern, dos mais importantes compositores do século 20.  Maneri recebeu encomenda do grande Erich Leinsdorf para compor para a Boston Symphony Orchestra, uma das maiores do mundo, peça que chegou a ser ensaiada, mas nunca executada: Leinsdorf tinha severos atritos com a orquestra. Maneri temperava seu gosto bastante eclético com sua origem jazzística, gênero em que foi exímio clarinetista. Lembro-me de um improviso que a plateia aplaudiu de pé, emocionada, aos gritos e urros, um delírio. Cansado de se curvar para agradecer, Maneri prostrou-se de joelhos diante do público, como que se ofertasse em humildade sua arte aos que ouviram sua música com tamanha emoção.

Foi com Joe Maneri que tive um contato mais sério com a técnica dodecafônica (um sistema que empregava 12 sons – teclas brancas e pretas do piano – em séries de combinações matemáticas). Compus uma ou duas peças, apenas como necessidade acadêmica: afinal, acho difícil alguém produzir alguma coisa razoável com aquilo. E se os “12 sons” foram uma experiência necessária ao meu estudo, logo Maneri ingressou-me em outro universo,  dividindo os sons não apenas entre aqueles 12 das teclas pretas e brancas do teclado do piano: ele procurava de início dividir cada tom não em meios-tons (teclas brancas e pretas), mas sim em ¼, ou seja, cada teclado de piano, se fosse seguir esta teoria, teria não 88 teclas, mas 176. E não parou aí. Introduziu o 1/6 de tom, que forçaria um piano eventualmente preparado para essa técnica ter 528 teclas! Porém, maluquice das maluquices, chegou aos 1/12 de tom, o que faria um virtual pianista usar 1.056 teclas, e do afinador de instrumento um sujeito maluco a passar dias inteiros em um único instrumento, caso ele existisse.

Para essas aulas Maneri usava o monocórdio, que, como se pode intuir, possui apenas uma corda. Algumas marcações na madeira permitiam criar essas divisões menores, e ele tentava fazer com que cantores, flautistas e violinistas executassem algumas “peças” (poucas notas!) com essas migalhas de tons (chamadas microtons); mesmo ao ouvido mais treinado, divisões de 1/12 são quase imperceptíveis. Ele confessava que executar aquilo era impossível, mas que essas partículas sonoras estavam dentro de todos nós (os críticos que o tinham como “o gênio desafinava”, mas não lhes dava a mínima). O monocórdio era exatamente o que o grego Pitágoras (770 a 495 a.C.) empregava em suas aulas e estudos, há mais de 2.500 anos! (Em arte, toda vez que “avançamos” longe demais, mais temos que retomar o passado para uma revisão). Progresso em arte, dizia meu pai, não existe. Ela está acima do tempo, apenas se transforma. E volta.

O chapéu de Wagner talvez fosse o “Godot” do Joe Maneri, aquele que nunca vinha. Muitos anos após deixar Boston, recebi um documento sobre o compositor. Qual não foi minha surpresa, não era apenas eu que usava o nome dele em meu currículo: na lista dele, eu figurava entre seus discípulos e não imagino o porquê da distinção. Encheu-me de orgulho e de boas lembranças daqueles tempos, vidas repletas de bons e grandes artistas. A memória nos trai. Mas sempre que revolvida, aflora como uma semente de nosso próprio crescimento interior revivida.

2009 foi um ano especial para mim: voltei a Boston, escala de uma visita a mais de duas dezenas de instituições musicais, a convite do Departamento de Estado dos EUA. Mas vou me deter apenas sobre a parte que me levaria a reencontrar Joe Maneri. Após o primeiro dia de visitas em Boston, recebi no hotel o telefonema do violista Renato Bandel, dando conta que Aírton Pinto havia morrido. Fomos amigos na Osesp, onde Aírton fora “spalla” (solista dos violinos e líder da orquestra), e com trajetórias semelhantes, respeitadas as diferenças de idade: na New England, Aírton havia estudado com Louis Krasner (à minha época uma lenda, apesar de bem velhinho), simplesmente o responsável pelo mesmo Alban Berg de Joe Maneri, ter escrito seu único – e lindíssimo – concerto para violino e orquestra, intitulado “À Memória de um Anjo” (para Alma Mahler, falecida aos 18). Aírton também foi professor da NEC e músico da Sinfônica de Boston por muitos anos. Mas ao indagar sobre Joe Maneri, olhares entristecidos me contaram que ele nos deixara. Talvez tenha ido em busca de seu “Godot”, que nunca lhe chegou em sua vida, encontro que deve ter acontecido lá no céu, três meses antes daquele mesmo dia. Fiquei sem o mestre e sem saber do chapéu.