Henrique Autran Dourado
Não apenas a quarentena, em si, aliada aos fatores psicológicos, como o receio e o medo, são ingredientes que em nada contribuem para o bem-estar das pessoas nesses tempos, apesar de o isolamento parecer o único caminho. De todas as dificuldades desse retiro, algumas das quais já tratei aqui neste espaço do ponto de vista artístico – Boccaccio, Camus, Plínio Marcos e Godard, por exemplo – está a forma de cada um lidar com uma ameaça permanente. Entre angústias e apreensões,medo do contágio e insegurança, desce na contramão um punhado que crê- ou diz crer,vítima de fanatismo – que a Covid-19 não é mais do que um “resfriadinho”, e a chamada segunda onda uma “conversinha” –ideologia rastaquera que, ela sim, é uma doença surreal assoprada lá do norte, como “o espião que veio do frio”, com seus ventos danosos sobre os incautos de cá, no hemisfério sul.
O psicossomático é um fator que não pode ser relevado. Como se trata de uma fronteira entre o orgânico e o psíquico, com as devidas escusas aos especialistas da área, é por causa dele que podemos sofrer alterações, preocupações e, em última instância, sintomas. A somatização é a transformação desses conflitos da mente em uma aparente realidade, via sensações e dores. Caetano Veloso criou, nos tempos do tropicalismo, um jogo de palavras de sabor concretista com sua “Alfomega”, montagem poética de octossílabos aundecassílabos: “O analfomegabetismo / somatopsicopneumático / que também significa / que eu não sei de nada sobre a morte / (…) tanto faz do sul como do norte”. Na época, fui procurar explicações sobre os significados implícitos e explícitos desses termos, a curiosidade é a mãe do saber.
Há ainda um subproduto deste amálgama psíquico-orgânico: a hipocondria, uma obsessiva preocupação com a saúde ou seu último grau,no surto da implacável síndrome do pânico: infarta-se com pressão baixa, do nada tem-se sensações de asfixia ou de um AVC por autossugestão– quem já conheceu uma vítima da síndrome sabe. Com frequência, o hipocondríaco é levado a excessos nos medicamentos, ingerindo-os sem necessidade ou em demasia. É essencial que, no curso de alguma eventual tendência de transmutação interior-exterior, o indivíduo se previna contra seus próprios delírios. Cair no torpor também é um veneno.
Portanto, como eu e o leitor nos inserimos na faixa do que se convencionou chamar “normal” – “De perto ninguém é normal”, olha o Caetano de novo aí -, é difícil que alguma hora nesses meses não tenhamos experimentado, em maior ou menor grau, o gosto amargo desse caldo que resulta do cansaço, da angústia e, no final da linha, do medo.
Sou aquele cidadão que se enquadra na média “normal” – termo que é apenas uma curva sem medições,réguas ou escalas que delimitem a normalidade. A ferramenta é tão somente aquilo que vemos nos outros, a “persona”, máscara social que muito depende de fatores culturais, familiares e religiosos,individuais e coletivos. Ora, se para o ladrão é normal roubar, para a freira carmelita é normal esquecer-se do mundo em sua clausura, consagrando a vida ao Senhor. É a norma de cada um, e muito tem a ver com a índole pessoal, algo como o “id” freudiano. (O que lembra a fábula do escorpião e da rã que, sobre uma pedra no meio do rio, veem a água subindo, ameaçando-os. O escorpião, ao ver que a rã iria nadar até a margem, insistiu e implorou e jurou respeitá-la em uma carona nas costas dela, que, meio incrédula, aquiesceu. Chegando ao outro lado do rio, o escorpião deu uma picada mortal no cangote do anfíbio, que, agonizando, resmungava que ele, o escorpião,havia descumprido sua jura de não lhe fazer mal. No que o peçonhento animal retrucou: “mas é da minha natureza!”)
De cada notícia que surgir –do contágio ou suspeita em um amigo ou parente até a morte de alguém pela Covid-19 -, pode sobrevir uma natural preocupação. Com os filhos, parentes, e, claro, a pessoa consigo mesma.
[Tenho um termômetro ao meu lado. É sempre bom, dizem (falando nisso, acabo de medir a temperatura: 36,5º, ótima). O coração parece bem, fora aquele mau jeito ao dormir que me fez sentir alguma coisa no peito. Não, não medi a pressão cardíaca: aquela sensação, ao levantar-me, passou em poucos minutos. Mas e essa respiração, será que não está um pouco ofegante? (Para o músico, respirar lentamente antes de entrar no palco faz o coração “rallentare” – diminuir o andamento -, atenuando a natural e necessária adrenalina,ao se apresentar,para que ela não transborde em um desastre musical. Aquela corizazinha? Ah, não posso com o ar-condicionado e o desligo, e com ele entra em off também o incômodo no nariz. Mas e a tosse? Um copo d’água e ela se foi, era apenas uma lasca da semente de granola do café da manhã]
Vivemos assim, numa constante provação diária, o que em música é um “ostinato”, repetição de certos padrões, com “crescendi” e “smorzandi” (diminuindo), “accelerandi” e “rallentandi” aqui e ali, em nossas gaiolas de passarinho de voo já atrofiado – o que salva é ampliar o alcance da mente criando, lendo, já que ela é a residência do mecanismo psíquico-físico. Fisicamente, mais lerdos e obesos, na maioria, exceção aos amantes contumazes dos exercícios e dietas.
Depois do dilúvio, nunca mais seremos os mesmos, tanto no contexto do relacionamento social quanto no modo de encararmos a vida. Porém, estaremos mentalmente fortes e preparados para lidar com as crises que fatalmente herdaremos.
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