Henrique Autran Dourado
Difícil mesmo é escrever sobre o pai da gente. O apelo emocional exige cuidado, para que a escrita não se dobre à paixão – mesmo que seja falando da literatura de um escritor acima de qualquer suspeita, sobre quem tantos já falaram. Recordar é preciso, especialmente para os que tiveram felicidade de com ele aprender no dia a dia, no almoço, no jantar, ter o privilégio da companhia nos finais de semana, quando disponíveis.
Em um 18 de janeiro como este nasceu em 1926 um menino, capiau de Patos de Minas, batizado Waldomiro (não usava, preferia só Autran Dourado, já complicado o suficiente). Muito cedo, foi levado por seu pai, Telêmaco, juiz de direito, com mãe Alice e irmãos, para Monte Santo, perto da divisa de onde à noite se vislumbra a suave tenda das luzinhas da paulista Mococa. Ali, foi criado moleque da terra, “menino curió”, dizia, e como a cidade era muito pequena, já andando com pernas próprias deu de dividir seu tempo com São Sebastião do Paraíso, quase três vezes maior. (Ainda pequeno, uma senhora analfabeta pedia-lhe que lesse trechos de um livro ilustrado sobre a I Guerra. Não tinha “sabência” para ler aquilo, então criava sobre o que entendia. Aí talvez o começo de tudo).
Como se as duas cidades ainda não lhe bastassem, aos 17 foi para a capital mineira descobrir um novo mundo, cidade grande que o acolheu com seu belo horizonte, nome com que fora batizada. Aprendeu taquigrafia – a espanhola, mais rápida, dizia -, que iria acompanhá-lo a vida inteira (em cartõezinhos, resumia nos curtos garranchos as ideias de um novo livro).
Em BH, estudou Direito na UFMG, para a qual já idoso viria a dedicar em testamento todo seu acervo de mais de 5.000 livros – era o que cabia em casa, rodeando as paredes de seu escritório, corredores, sala e quartos dos filhos, até na parte de cima dos armários embutidos. Tudo agora recompõe na universidade o ambiente caseiro de que mais gostava, aquele onde sua obra alcançara plena maturidade. Uma espécie de versão mineira de seu cantinho de escritor, no Rio, para onde havia se mudado em 1954. Com a posse de Juscelino Kubitschek, que tinha apreço especial por ele, foi trabalhar no Palácio do Catete, na capital da República. Em 1958, foi nomeado Secretário de Imprensa da Presidência, o pioneiro no cargo hoje chamado Porta-Voz.
Na literatura começou cedo, publicando já aos 19 anos; foi aconselhado por um escritor mineiro, Godofredo Rangel, que o dissuadiu do mito do artista precoce. O pai concordou que melhor seria trilhar o caminho da formiguinha, a labuta diária, construir uma literatura coesa e única em personagens e cenários, quase todos da cidade mítica de Duas Pontes, que criara à imagem e semelhança de sua vivência interiorana.
Seguiram-se muitos livros, diversos deles traduzidos para o inglês, alemão, francês, espanhol e outros idiomas. Já na segunda publicação, aos 21 anos, Teia, foi agraciado com o Prêmio do Jornal das Letras. Seguiram-se diversos outros, como o Jabuti, o Machado de Assis, o Prêmio Camões, o Goethe de Literatura, e viu a inclusão de seu trabalho nas Obras Representativas da Unesco. Quis o destino que a Grã-Cruz da Ordem do Mérito Cultural Brasileiro fosse entregue simbolicamente à família meses após sua partida, em 2012.
Com suas tramas, riscos, bordados e carpintarias, consolidou um estilo único, inconfundível, livre de academicismos, arquitetura que desenvolvera tanto na própria labuta quanto nas leituras e releituras incansáveis de mestres como Machado de Assis, Faulkner e Flaubert. Difícil é escolher o melhor livro: parece-me que será sempre o último que reler, mas o que mais me seduz é “Ópera dos Mortos” (talvez por isso, foi o último!), do qual peço a ele licença para reproduzir um trecho:
“Não adiantava parar os relógios. Ainda bem que eles deixaram a pêndula na copa. De duas bolas, em formato de 8; tem pêndula mais bonita, de capelinha. Relógio de 8 é muito comum, até enjoa. Relógio de capelinha é que é mais bonito. Mas igual o relógio-armário (quando ele desceu, veio e parou, olhou parando na cara de cada um, foi assim mesmo que ele fez ou foi Rosalina? no dia do enterro, veio e parou o relógio-armário), igual o relógio da sala não tinha igual, nem nunca viu um assim tão rico, antigo de velho. O relógio da copa, quando chegar a vez, ela é que ia parar. Gostava de ouvir as batidinhas, o tique-taque gostoso no vaivém da pêndula. (…) As pancadas das horas, a musguinha vindo. (…) Minueto, Rosalina diz que é minueto”.
A dança dos relógios, nessa “Ópera dos Mortos”, a ourivesaria de cada momento, cada único momento e cada um após o outro, diversos relógios cujo oscilar dos pêndulos seria interrompido, cada um a sua vez, com a morte de cada pessoa do casarão. Tensões elaboradas, um crochê intricado e denso. (Musicalmente me lembraria Brahms, os momentos se sucedendo em ondas de pensamentos e angústias onde navegar o leitor; um desenvolvimento pleno de encadeamentos e dinâmicas, como em uma sinfonia).
Melhor assim, saudar o velho Autran por seu trabalho, nada de remoer no dia do nascimento os tempos difíceis que precederam sua partida. É dia de agradecê-lo por ter vindo a este mundo nos deixar tudo o que produziu com sua humildade, sempre avesso a badalações. Uma obra para a posteridade, sem nunca pensar em enriquecer, bons livros não dão dinheiro, falava: “Também sei escrever um best-seller: leitura bem fácil, suspense, traição e uma pitadinha de sacanagem”. Só que nunca o fez.