Henrique Autran Dourado
Bem antes do que se poderia supor, os agrupamentos de músicos em guildas, associações e pequenas máfias corporativas, familiares ou de compadrio já existiam – e isso, muito antes do surgimento do capitalismo, sistema em que a competição acirrada cria, em cada nicho, armaduras de autodefesa e, com elas, hostilidade a estranhos. Sendo o dinheiro primordial à subsistência, é necessário agregar-se para viver da nobre arte.
A família de Johann Sebastian Bach era tão numerosa que, entre os séculos 17 e 18, na cidade de Erfurt, foi selado um protocolo estabelecendo multa de cinco táleres (moedas de prata da época) para quem contratasse um músico em cujo sobrenome não constasse Bach, de festas de casamento a funerais (ironizando, “Bach” em alemão quer dizer riacho, sem cuja água peixe não nada – e em Erfurt músico não trabalhava). A máfia da cidade era poderosa a ponto de obter do governo uma multa para um conhecido líder musical, Tobias Zabelitzky, que desafiou o protocolo e prestou serviços a outra guilda.
A disputa entre os músicos na época era tão acirrada que por um bom emprego valia até casar-se com a filha do Kapellmeister (mestre de capela da cidade). Na aprazível Lübeck, no norte da Alemanha, Händel e Mattheson amargaram perder uma boa vaga porque não simpatizaram com a filha de Buxterhude, um respeitado organista muito admirado por Bach, que com frequência viajava para vê-lo tocar. (Talvez o empecilho para uma possível união tenha sido a idade um pouco avançada e poucos atrativos da filha do chefe. Dieterich Buxterhude era poderoso e teria, ele próprio, obtido sua posição casando-se com a filha de Franz Tunder, a quem sucederia na função.
Os músicos agregados às máfias eram bem organizados: tinham uniformes e distintivos próprios, a fim de não serem confundidos com membros de outras guildas. Na Alemanha barroca, a profissão tinha seus rígidos monopólios, sendo as pagas fixadas entre contratantes e líderes dos grupos.
(Breves parêntesis: em meus tempos de EUA havia concertos denominados “Union gigs”, para afiliados à AFM, e “non-Union gigs”, para não afiliados; quem tocava nos primeiros não tocava nos outros, sob pena de ser multado pela União).
Esse tipo de organização não era privilégio dos alemães. Também existia na Itália, mas com certa liberalidade músicos podiam aqui e ali pular a cerca e “dar uma palinha” em outra guilda. Benvenuto Cellini, ainda no século 16, era um artista tão completo que o francês Berlioz, dois séculos depois, dedicou-lhe uma ópera cujo título traz o nome do italiano. Além de ourives, pintor e projetista, Cellini era flautista, cornetista, cantor e compositor; famoso, transitava livremente em diversas guildas. Não bastasse a música, era entalhador de marfim e construtor de alaúdes, címbalos e diversos tipos de viola. Apesar disso, o trânsito de seu pai na corte de Piero de Medicis certamente o ajudou a obter permissão para o acúmulo de cargos.
Em Veneza, embora fosse possível atuar em guildas diferentes, os músicos da igreja de San Silvestro rivalizavam com os da San Marco na disputa pelos trabalhos musicais. E havia divergências contábeis sobre o que seria objeto dos cachês: apenas a cerimônia ou também os festejos posteriores, como bufês ou jantares.
O célebre compositor Claudio Monteverdi (1567-1643), pioneiro no gênero operístico, acumulava as funções de mestre de capela na San Marco com as de músico oficial do doge (espécie de juiz plenipotenciário escolhido por votação, em Veneza). Após uma discussão com um ressentido e furioso músico, chegaram às vias de fato e o mestre quase teve sua barba arrancada.
Dentro das próprias guildas, as funções, por classes de instrumentos, tinham suas especialidades: os saquebutes (antigos trombones) eram mais afeitos a funções religiosas: juntos, tinham o poderoso apelo de um órgão de tubos. Trompetes e clarins eram palacianos, serviam à pompa e circunstância dos poderosos, enquanto as trompas, originárias da tradição dos caçadores (por isso mesmo “da caccia”), tinham seus tubos enrolados para possibilitar aos músicos carregá-las a tiracolo, em seus cavalos. Por causa dessa mobilidade, prestavam-se a outras funções além de sinalizadores da caça. O “shawm” (antecessor do oboé), com seus agudos cortantes, anunciava de cima das torres quando alguém se aproximava do burgo. Mas os trompetistas, com trânsito nas cortes devido ao privilégio de suas funções palacianas, tinham regalias especiais e, claro, cachês mais altos nos serviços.
Havia disputa até “no macro”, entre países, pelo domínio da música: no século 17, a Inglaterra era uma grande potência, e singrando mares invadia e conquistava terras em todos os cantos – de meras ilhotas a continentes – onde pudesse fincar as âncoras de seus navios. A armada real levava também valioso auxílio à consolidação de seu poder: lições de economia, agricultura e arte, com destaque para a música. Trazia na bagagem farto material de Henry Purcell, organista da Royal Chapel e da Westminster Abbey, que compunha em todas as formas e estilos. Mesmo assim, a coroa inglesa nunca chegou a ameaçar a hegemonia musical dos alemães, muito menos a dos italianos. O escritor francês Stendhal (1783-1842) chegou a afirmar que parecia ser proibido compor em lugar que não fosse à sombra do Vesúvio!
(Fontes: DOURADO, Henrique Autran. “Pequena Estória da Música”. SP: Vitale, 1999. RAYNOR, Henry. “História Social da Música”. RJ: Zahar, 1981).