Henrique Autran Dourado
O Estadão publicou, no dia 12/11, matéria que acende a luz vermelha: “Até que ponto chega o ódio cego e visceral, quando não patológico”. Palavras do ministro do STF Celso de Mello, indignado com a alucinada incitação de uma advogada gaúcha: “estuprem e matem as filhas dos ordinários ministros do STF”. Ela reagia à decisão da Suprema Corte pela inadmissibilidade da prisão em segunda instância, antes de esgotados todos os recursos e o trânsito em julgado. A advogada se referia, claramente, à decisão que teve como consequência a soltura do ex-presidente Lula. Sem entrar no mérito da questão, que é coisa julgada, sirvo-me desse gravíssimo incidente de possíveis desdobramentos penais para uma digressão a partir do que Mello chamou “fundamentalismo político”.
Para mim, foi imediata a associação das palavras da advogada a um discurso do passado, guardadas as proporções e o contexto histórico. Em setembro de 1968, em Brasília, o então deputado Márcio Moreira Alves fez um pronunciamento, no Congresso, com teor naïve se comparado ao tom da advogada contra o STF. Longe de ser uma ameaça criminosa, a fala de Alves foi uma atitude até pueril naquele momento crítico do país.
A Polícia Militar do Distrito Federal havia invadido a Universidade de Brasília (UnB) e Alves subira à tribuna para pedir o boicote ao desfile de 7 de setembro, que seria um artifício para incutir no povo um “falso instinto patriótico”. E estendeu o pedido “às moças, aquelas que dançam com cadetes e namoram oficiais”. O governo Costa e Silva, via STF, exigiu do Congresso a cassação de Alves, que terminou rejeitada. Foi o estopim: em dezembro, três meses depois do discurso e seus desdobramentos, era baixado o hediondo AI-5; Alves fugiu do país, retornando somente com a anistia, em 1979.
A inglesa Karen Armstrong (1945), formada em Oxford e ex-professora da Universidade de Londres, conseguiu uma façanha: chegou a ser freira durante sete anos, no Sagrado Coração de Jesus, hoje leciona judaísmo e treinamento para rabinos na escola superior Leo Baeck e é membro honorário da Associação de Estudos Sociais Muçulmanos. Seu precioso livro “Em Nome de Deus¹” remete a 1492, ano em que, segundo ela, aconteceram três fatos de suma importância para cristãos, judeus e muçulmanos: “a descoberta da América, a conquista de Granada e a expulsão dos judeus da Espanha”, quatro décadas após a queda de Constantinopla.
Com seu cabedal e ecletismo, Karen tornou-se uma das maiores especialistas sobre o fundamentalismo nas três grandes religiões monoteístas. O livro traz uma caudalosa bibliografia como suporte, incluindo textos de Nietzsche e os teológico-filosóficos de Spinoza, e é primordial para quem quer compreender o fundamentalismo político ou religioso (ou ainda ambos em convergência) nos dias de hoje.
Dias após a investida afrontosa da advogada contra as filhas dos ministros, um grupo de 30 militantes favoráveis a Juan Guaidó, autoproclamado presidente da Venezuela, invade a embaixada de seu país em Brasília. Segundo declarou à revista Fórum o deputado Paulo Pimenta, que lá esteve, não lhe parece que o governo brasileiro tenha relação com o episódio em si, mas foi notório o acirramento de ânimos após o declarado apoio do Brasil a Guaidó contra o presidente Maduro. Detalhe importante: todos os invasores venezuelanos portavam mochilas com celulares, carregadores, baterias e… uma bíblia – o que nos leva à certeza de que o fenômeno que acontece no Brasil não nos é exclusivo, está presente em vários outros lugares. Além de cristãos de diversas ordens e seitas, incluindo as obscurantistas como os católicos “Arautos do Evangelho” e “Opus Dei”, são tão fundamentalistas quanto alguns núcleos ortodoxos judeus e muçulmanos, seguindo a ótica equidistante e imparcial de Karen Armstrong.
Sempre em nome de Deus, é inegável que o fundamentalismo político e religioso vem avançando no Brasil. Sem qualquer nexo, a ministra Damares Alves (também já alvo de críticas do ministro), em um seminário sobre a “cura gay” (Estadão, 12 de novembro), disse que “o Estado é laico, mas não é laicista”. No dia 2 de janeiro já havia declarado ao mesmo jornal: “O Estado é laico, mas esta ministra é terrivelmente cristã”. Laicista, deve não saber Damares, na verdade seria uma referência a laicidade – segundo o Houaiss, “qualidade do que é laico ou leigo” -, portanto todas as palavras remetem à mesma coisa. Ou seja, têm a ver com o antigo secularismo e o lema revolucionário francês “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” identificado, em 1905, com a lei que determina a separação entre Igreja e Estado. Hoje, políticos tentam seduzir certas correntes religiosas que, além de lhes proporcionarem o apelo sedutor do extremo conservadorismo, representam números bastante significativos na contabilidade eleitoral.
A indignação do ministro Celso de Mello com a provocação da advogada não é só dele, que de pronto resolveu manifestar-se à luz de sua vasta cultura jurídica e universal, à parte das possíveis consequências de uma denúncia criminal. Na verdade, ele representou todos os brasileiros que pensam um país mais justo, mais digno e sob plena democracia. Quem diria, o discurso de Moreira Alves virou história da carochinha.
[¹AMSTRONG, Karen. ‘Em Nome de Deus’ (‘O fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo’). Trad. Hildegard Feist. SP: Ed. Schwarcz, 2001]