“… é ruim da cabeça / ou doente do pé”. “Samba da Minha Terra (1940), de Dorival Caymmi, foi lançado pelo Bando da Lua, que viera dos EUA onde acompanhava Carmen Miranda. Sucesso também com João Gilberto no famoso concerto da Bossa Nova no Carnegie Hall, em 1964. Tem a baianidade, o requebro das mulatas – “quando se canta todo mundo bole”. E João mostrou que bossa nova era samba, sim, sinhô. Pesquisando para o meu Dicionário de Termos e Expressões da Música¹, listei em verbetes mais de 30 ritmos e gêneros de samba de todos os matizes, verbetes que dariam um livro à parte. Sigo um pouco pela cronologia e faço uns passeios, quando necessário.
De “semba” (arbusto que balança ao vento), que em Luanda, capital de Angola, se refere a uma dança de umbigada, o samba tornou-se benquisto pela classe média depois da primeira gravação de “Pelo Telefone”, por Ernesto dos Santos, o Donga, em 1917, e logo se tornou coqueluche com Lamartine, Pixinguinha, Jamelão e outros. Mesclou-se com facilidade a vários ritmos, dando início a diversos gêneros: nos anos 1930, o samba já havia flertado com canções, nos teatros de revista do Rio: música, anedotas e vedetes. “Ai, Ioiô”, de Luís Peixoto e Marques Porto, já havia surgido em 1929. Bem depois, destaque para “Ave-Maria no Morro” (1942), de Herivelto Martins.
O choro, no princípio instrumental, passou a incluir letras nos anos 1930, como em “Vida de Passarinho”, de Ari Kerner e Veiga de Castro. “Tico-Tico no Fubá” (1931), de Zequinha de Abreu, ainda era choro, mas a ginga carioca o fez samba-choro. Valdir Azevedo criou o imortal “Brasileirinho” para um menino que tinha um cavaco de uma corda só em 1947, e a letra viria com Pereira Costa em 1950, alcançando sucesso na voz virtuosa de Ademilde Fonseca – saltos de sexta e cromatismos não são para qualquer um. No mesmo ano, chegou o sambalada, meio caminho entre os dois ritmos, e o samba batido, do interior da Bahia. Também se aproximou do samba uma dança de sucesso espanhola trazida para a América Latina via Cuba, de onde nasceu o sambolero.
E vieram o samba-lenço, misturado ao fandango e com coreografias de lenços coloridos, o samba-traçado, influência do candomblé nagô com sabor de maracatu (“este samba que é misto de maracatu”: “Mais que Nada”, de Jorge Bem, 1963), o samba-rural, resquício da cultura negra paulista, o sambalelê, do congo de roda, e o samba-rock. No último, insere-se “Chiclete com Banana”, de Gordurinha e Castilho, lançado em 1958 pelo paraibano Jackson do Pandeiro: “Só ponho bebop no meu samba / quando o Tio Sam pegar no tamborim (…) / é o samba-rock, meu irmão”.
Com as escolas de samba vieram os sambas de enredo, que sempre exaltam um acontecimento histórico, um personagem, daí o “samba-exaltação”. Pioneiros foram Mano Décio da Viola, Estanislau e Penteado Silva, com “Inconfidência Mineira” (1949), mas a beleza maior, unanimidade nacional, fica com a portelense “Foi um Rio que Passou em Minha Vida” (1970), de Paulinho da Viola. Sem desfilarem na avenida, são do estilo o “Samba do Crioulo Doido” (1968) de Sergio Porto, e “Vai Passar”, do Chico e Francis Hime (1984, ano das Diretas Já). Das escolas e blocos surgiram também o samba de morro, de percussão bem carregada, o samba de terreiro ou de quadra, o samba de valentes e outros tantos.
Moreira da Silva, o Kid Morengueira, malaco sambeiro que só bebia leite e andava de chapéu e “liforme branco”, diria Caymmi, autoproclamou-se inventor do samba de breque, em 1936, com “Jogo Proibido”, que parava o som – daí o breque, “brake”, freio de carro, em inglês – para divertidos recitativos que hoje achariam que é “rap”. (Segundo Ary Vasconcelos², o breque seria a “interpolação de uma frase ou outra”). Mas três anos antes, Heitor dos Prazeres já havia criado, em “Eu Choro”, aquela pausa para “breque: eu vou chorar”. O historiador José Ramos Tinhorão3 lembra que “Sinhô”, em 1929, já havia encaixado três redondilhas menores em “Cansei”, assim como a dupla Ismael Silva e Nílton Bastos: “Se Você Jurar”, ou “O que Será de Mim” (“breque: eu não sei o que será”). Mas a fama de criador do breque quem levou mesmo foi Morengueira, que fazia longos recitativos nas pausas. Nos anos 1950, o gênero foi também assimilado por Miguel Gustavo e Billy Blanco.
Maleável que é, o ritmo logo adentrou outras searas, a exemplo do samba de gafieira, surgido nos anos 1940 – corpos colados em gingados sensuais, à maneira da salsa cubana -, e o samba de partido alto, intimista e de harmonias simples, bom para os pagodes de quintal. (O nome pagode vem da tenda, geralmente um encerado de carroceria de caminhão, que cobria os quintais onde era cantado e dançado. Erguido por uma corda pelo meio, a cobertura lembra mesmo um pagode chinês). Mesclado também era o samba-jazz, que, com Elza Soares e seu “scat-singing”, arrastou Ed Lincoln, Dóris Monteiro e Leny Andrade, estrela de “Estamos Aí”, do gaitista Maurício Einhorn, com Durval Ferreira e Werneck (1968).
Toda sorte de ritmos, como o samba caipira paulista, cantado em terças por duplas, como os caipiras, surgiram para enriquecer. O samba hoje é como o jazz: engloba uma infinidade de gêneros e continua evoluindo, conquistando novos espaços. Não há limite: enquanto a criação persistir o samba estará aí, para todos os sujeitos bons da cabeça e sem doença no pé.
(1) SP: Editora 34, 2004, 2ª ed. (2) “Panorama da Música Popular Brasileira”. SP: Martins, 1964. (3) “Pequena História da Música Popular”. SP: Círculo do Livro, s/ data.