Cornélio Pires, estudioso do folclore e cantador, bem definiu o sertanejo: “canto romântico e triste que comove a senzala e a tapera”. O gênero terminou por avançar sobre os centros urbanos e periferias, levado pela mão de obra das construções, mutação que abandonou o sertanejo caipira em suas origens. Nas cidades, o “novo sertanejo”, logo abriu os olhos da indústria musical, que viu nos artistas produtos maleáveis para vender em massa: “vocês vão enriquecer, mas terão de agir conforme nossos produtores os vestirem e mandarem”. Segundo o teórico alemão Theodor Adorno (1903-1969), quando a indústria se apropria da arte popular torna-a “civilizada” (diria: aculturada), e “perde a simplicidade do rústico”.
Imiscuíram-se nas plagas do “novo sertanejo” músicos como Régis Duprat, arranjador de formação clássica com passagem pelo Tropicalismo (na capa do disco “Tropicália Duprat” aparece com um penico nas mãos). A dupla Léo Canhoto e Robertinho foi pioneira na fidelidade às diretrizes dos cartolas dos discos. Foi assim que criaram “Meu Carango” e se esqueceram da porteira, do mata-burros e do ranger do carro de boi para livre-cantar, numa espécie de breque, “sai da frente, sua lata velha”, “passa por cima”, respondeu o outro, que recebeu de volta um “pois eu passo mesmo, lá vou eu”, e crashhhh, barulho de acidente!
A Jovem Guarda acabara por contaminar os sertanejos com Rua Augusta, “Festa de Arromba” e “Eu sou Terrível”. Os que não se deixaram levar pela moda e continuaram apegados à raiz permanecem pobres, mas são felizes em seus ranchos. Já os modernosos vestiram cinto de fivelão, chapéu de caubói americano, bota de salto e calça justa, mas mantiveram o canto em terças paralelas típico dos caipiras. Mas “Tristeza do Jeca” (1918), de Angelino de Oliveira, inspirada no “Urupês”, de Monteiro Lobato, 90 anos depois de composta foi considerada por um júri convidado pelo jornal A Folha de São Paulo a melhor música sertaneja de todos os tempos.
Do mesmo jeito, o que se chama forró, nos dias de hoje, não é o Forrobodó (“sarau chinfrim”) de Chiquinha Gonzaga, cunhado no maxixe do início do século 20. No Nordeste o forró é forrobodança, assumiu-se um embalo gostoso ao som de sanfona, triângulo e zabumba em ritmo de xote, xaxado e baião (nada, por favor, a ver com “for all”). O forró de hoje é o dos centros urbanos, bailes surgidos com a mão de obra vinda do Nordeste, e travestido tal qual aconteceu com o sertanejo vindo do “inland” brasileiro. Completa a receita o rock, via Jovem Guarda, assim como o “country” importado que travestiu o sertanejo urbano. Em comum, no sertanejo e forró modernos, a encarnação urbana e o “kit fama”: corrente de ouro, carro importado e loira na cama.
“Jenifer”, que estourou nas paradas (mais de 370 milhões de acessos em uma plataforma da internet), o novato Gabriel Diniz bebeu no ritmo à embolada de algumas letras do forró, sucessos de Jackson do Pandeiro como “O Canto da Ema” (1956), de João do Vale, Ayres Viana e Alventino Cavalcanti: “… você bem sabe que a ema quando canta traz no meio do seu canto um bocado de azar”. Diniz: “mas ela veio me xingando enchendo o saco perguntando quem é essa perua aí?”. Ora, Gabriel cedo mudou-se com a família para a Paraíba, lá tendo vivido boa parte de sua infância e juventude. Não por coincidência, terra do mestre Jackson do Pandeiro, do “Canto da Ema”, notória influência sobre o novato.
O ritmo de “Jenifer” é mesclado com o da salsa, incluindo os típicos “riffs” de metais, o balanço latino de bongôs e o suingue de cúmbias, merengues, mambos e camisas de estampas tropicais. “Novo sertanejo”? Talvez apenas alguma simpatia. A letra de Diniz é puxada por um nome feminino até comum nos dias de hoje, e nela o autor diz que teria conhecido a moça no Tinder, um aplicativo de relacionamentos para celular que faz, via computador, os cálculos e “matches” das melhores escolhas de pares para cada membro inscrito. De resto, a letra é simples e foge das dores de que se tornou refém a maior parte do sertanejo atual, as de corno e de cotovelo.
Definitivamente, de “novo sertanejo” em Diniz só enxergo o público jovem, que gosta do gênero, e alguma sombra, ao fundo, bem atrás do nordestino e caribenho. Já o pop do cantor é consequência natural pós-Bossa e pós-Tropicalismo. Essa influência nordestina, mesmo que um tanto pasteurizada, é evidente em outras músicas de Diniz, como “Amor de Copo” e “Brincar de Amar”, com direito a sanfona.
Que ele era um talento a se lapidar, não se pode negar: uma boa extensão vocal e agudos sem os cacoetes do “yodel” (do alemão “Jodel”, Alpes suíços, troca de registros natural e falsete importada pelo faroeste americano: “ioleí-hi, ioleí-hi”. Quando mal feito, lembra um rapazola em fase de mudança de voz). Uma letra divertida, bem assentada no ambiente urbano, ao ritmo do “blend” saboroso de nordestinos e caribenhos.
O sucesso rápido derrubou o jovem Gabriel Diniz, aos 28 anos, neste fatídico 27 de maio: duplas famosas viajam em jatinhos, ora, o cantor não quis fazer por menos. Cantou Janis Joplin: “… você não vai me comprar um Mercedes-Benz? / Todos os meus amigos dirigem Porsches, preciso me equiparar”. E fez o que pôde, pagou R$ 4.000 para caber em um pequeno e velho monomotor a hélice construído há 45 anos para quatro pessoas. Saiu da Bahia para Alagoas, sobrevoando Sergipe. Exatamente onde ficou após uma queda brusca. Sem lenço, documento, sequer caixa preta. Uma pena mesmo.