Jarbas Matias, coroné de apelido por causa dos tempos de quartel em Campinaçu, rebento de um goiano dos cafundós do sertão (coroné dos batalhões do mato). Jarbas nasceu na fazenda em Porangatu, hoje quase nos limites de Tocantins, não longe de onde havia uma pista de pouso, orgulho da região. (Bom ficar vendo os raros aviões pousarem e decolarem, a pista curta e estreita onde os pilotos se arriscavam.)
Nerci, pai de Jarbas Matias, era, como todo coroné do mato, duro com os filhos, pouco falava, gritava sem pensar, não segurava os palavrões. Não se sabia quantas terras, quantas glebas o velho tinha, mas diziam muitas, e iam cada vez melhor os negócios com gado – que “a gente marca, tange, ferra, engorda e mata”, lembrou Vandré em “Disparada”, música que Jarbas detestava, prosa de comunista. Matreiro, Nerci contratava e arrendava peões e jagunços e os armava de arcabuzes e espingardas para proteção de suas posses. Mas Jarbas não era do trabalho no braço, queria viver em cidade maior, altura de seus sonhos, Anápolis.
Para lá foi de mudança com a senhorinha e três filhos, Edivardo, Fábio, Cláudio. Lana foi temporã, mas era Cláudio o mimado da família, criança de manhas e birras. Os irmãos sabiam que ele, varão caçula, era o predileto, fazia pintar e bordar, só ralhavam quando o pequeno aprontava travessuras cabeludas. Trupe de macho aquela, manuseava cano duplo e “colt cavalinho” para cantar de galo. Mas era uma prole harmoniosa, tirando Lana, sempre em outro plano, discrição e recato. Era apenas uma mulher, uma criança.
Um dia, Coroné Jarbas Matias recebeu uma carta, era para ir correndo à capital, Goiânia (grande centro, um dia será meu lugar, pensou), encontrar-se com o oficial do Foro da cidade. Deu calafrio, que seria? Socou as roupas na mala de caserna e despencou para a capital. Estava afoito, coisa boa não poderia ser, foi direto e com fome ter com o cartorário. Sente-se aí, meu rapaz. Olha, vou ser direto: você tem bens a registrar, tudo em seu nome, mas é sigilo. É só assinar aqui, apontou, e ir aos cartórios protocolar essas certidões para averbação. Mas o que são, perguntou Jarbas, meio abilolado. São terras, meu rapaz, muitas terras, plantações, uma indústria e bom gado (“porque gado a gente marca”, com ódio lembrou-se mais uma vez do Vandré!) Tudo dito e feito, voltou a Anápolis de peito cheio com o que vira. Terra, gado e gente (“mas com gente é diferente”, outra vez o capeta vermelho do Vandré o caceteava), tudo nosso!
Cláudio, o caçula por unção paterna, poderia ter a melhor parte, mas acatou a palavra do pai. Ficou com as glebas perto de Anápolis, era de lá que gostava, um dia terei um cargo, sonhava. Edivardo e Fábio foram de vez com o pai para Goiânia, e de lá tocariam seus negócios, suas terras, suas posses. Só que a vida de Fábio em Anápolis não deixou por lá boas lembranças, havia muitas notas promissórias, papagaios e outras aves a saldar, credores iam a Goiânia procurá-lo, até o pasquim local publicava coisas de enrubescer. Uma nota promissória saldava um protesto, com terras pagava a nota, transações já na alça de mira da sanha dos anapolinos, que viam com olhos enviesados aquelas movimentações nada canônicas.
Fábio passou a ver desviada a atenção que pesava sobre si para o Coroné, já o homem mais poderoso da capital, o que era muito ruim para os negócios paternos. Os lépidos passos financeiros de Fábio eram de légua corrida, mais rápidos do que os acontecimentos andavam. E Cláudio desandava a defender o pai das arapucas, desbocava até nas rádios. Tinha a língua solta e se expunha muito, mas, diziam, “não inflói nem contribói”. Não raro pulava a cerca, ia longe demais, aí era problema. Coroné Jarbas continuava tendo em Cláudio seu xodó, apesar das estripulias, mas os desconcertos de Fábio já lhe maculavam a imagem, eram nebulosos demais.
Coroné Jarbas sentia as primeiras perdas. Alguns velhos amigos não lhe davam trela, amargava ter de negociar com desafetos. Os inimigos eram os de sempre, antes incomodavam, ele largava o verbo ou ameaçava com gestos. Mas a perda de gado, gente, e alguns territórios recebidos naquela herança sigilosa era amarga. Como tocaria seus projetos nessas condições, maldito pelos desafetos, apesar da legião respeitosa que o bendizia na outra trincheira? Como tocar seus planos de poder? Os atropelos de Fábio só lhe passavam de raspão, tiro de cano torto de jagunço, e os palavrórios do caçula eram mera travessura de moleque, logo esqueciam.
O tempo passava como roda-gigante: ora coisa boa, ora coisa ruim – ou seria coisa mandada? Estava difícil negociar com credores e mesmo com muitos dos que antes o bajulavam. Colocou seus projetos na balança, não bastavam a disciplina e a mão de ferro, melhor serviriam o verbo e a verve do que o andar de soldado.
Jarbas Matias Brumário viu pragas e incêndios secarem vários campos. Perdeu gado, perdeu gente, não tangeu, não ferrou nem matou (o diabo do Vandré!). Mas o antes homem poderoso agora tinha de negociar com tudo e todos, já lhe secara na boca o gosto inebriante do poder. Do futuro e seus projetos não se sabia, e se maquinava nem o sabiam os mais chegados. Sentia-se perdido. Era melhor esperar a água barrenta vinda com a chuva descer o riacho para estudar-lhe o leito. E pensar. Água traz, água leva. Coisa boa, coisa ruim.
(“in memoriam”: Autran Dourado, meu pai, mestre das palavras)